Supermercados de periferia restringem acesso a produtos como chocolate e desodorantes

Polêmica sobre embalagem sem carne expõe prática comum em lojas de bairros afastados

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Cleberson Santos Jessica Bernardo
São Paulo | Agência Mural

Desodorantes, protetores solares, pilhas e energéticos. Até barras de chocolates e cremes de avelã.

Apesar da polêmica envolvendo a bandeja vazia de carne numa unidade do Extra no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, não é de hoje que supermercados em regiões periféricas restringem o acesso de clientes a determinados produtos.

A justificativa é sempre a mesma: evitar furtos.

A reportagem passou por dez supermercados no distrito do Capão Redondo (zona sul), entre terça (19) e quarta-feira (20). Em nenhum deles foi vista a mesma situação denunciada no Jardim Ângela –o consumidor só recebia a carne após pagar a bandeja no caixa–, mas em todos há pelo menos um produto que só pode ser acessado pelo cliente com a ajuda de um funcionário.

São itens que ficam trancados em armários ou expostos nas prateleiras, mas com partes faltando, de modo que só é possível ter acesso ao produto completo ao passar pelo caixa.

Em três unidades da rede Ricoy, que possui mais de vinte lojas espalhadas pela zona sul da capital paulista, marcas de desodorantes ficam nas prateleiras sem o dispositivo de spray. A tampa do produto só é entregue para o consumidor depois da compra.

A mesma rede também restringe o acesso a uma marca popular de creme de avelã. Nas três lojas visitadas no Capão Redondo, esse produto fica no atendimento ao cliente, longe das prateleiras.

Já em uma loja da rede em um shopping de Interlagos, bairro de maior poder aquisitivo também na zona sul, o mesmo item divide espaço no corredor com geleias e doces, sem qualquer diferenciação. No local, desodorantes ficam expostos com as tampas, ao contrário do que ocorre nas de regiões mais pobres.

Outras redes adotam a mesma prática. Em uma loja do supermercado Talento's na rua Denis Chaudet, no Jardim Dracena (zona oeste), um armário com porta de vidro exibia potes com cremes de avelã. Para comprar o doce, era preciso pedir para um funcionário abrir a tranca.

A 400 metros de distância, a unidade do supermercado Serrano, no Jardim Alvorada, também mantém o creme de avelã afastado dos consumidores. No local em que ele está guardado ficam também chocolates, bombons e outros doces.

Em dois supermercados da rede Beira Alta, que tem seis lojas no Capão Redondo e em cidades próximas, como Embu das Artes, na Grande São Paulo, um armário fechado a chave expõe barras de chocolates e de cereais, além das bebidas.

Em outro armário, ficam produtos de higiene pessoal como desodorantes, enxaguantes bucais e lâminas de barbear. Para comprar algum deles, é preciso pedir a um funcionário que abra o armário.

O Capão Redondo é um dos distritos mais populosos de São Paulo e fica ao lado de outras regiões conhecidas, como o próprio Jardim Ângela e o Jardim São Luís. Esses três bairros chegaram a ser considerados os mais perigosos do mundo durante os anos de 1990. Apesar dos investimentos públicos que ajudaram a deixar a região mais segura, ainda carregam esse preconceito.

Na rede de supermercados Dia, duas lojas do Capão Redondo separam produtos como desodorantes, cremes e lâminas de barbear em armários ou no atendimento ao cliente, o que não ocorre na loja da avenida Giovanni Gronchi, na Vila Andrade (zona sul), uma área mais nobre.

Consumidores afirmam que a prática intimida e desestimula a compra. A analista de relacionamento Bruna Francieli Sena, 29, conta que costuma desistir do produto se precisa chamar um funcionário para comprá-lo.

"Acho que se estão ali [trancados] é porque esses itens são os mais furtados. Não acho errado, mas quando tem um armário eu nunca compro. não gosto de ficar pedindo para abrir", conta Bruna, que faz compras em algumas das lojas visitadas pela reportagem.

Um dos poucos supermercados na região que não possuem alimentos e itens de higiene armazenados em armários é o Sonda, no Parque Fernanda (zona sul). A loja, porém, coloca lacres em produtos como pilhas.

No caso envolvendo o Extra, o Procon entendeu que a rede adotou critério discriminatório, já que não adota a mesma prática em unidades de outros bairros.

Para o advogado do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), Igor Marchetti, práticas adotadas por outras lojas seguem o mesmo critério. "Isso acentua a criminalização da pobreza. Não só nas regiões mais pobres têm furtos em supermercados", afirma.

Ainda segundo Marchetti, esse tipo de medida viola o Código de Defesa do Consumidor: "O consumidor tem direito de levar o produto como ele vem da fábrica. Nessa retirada e colocação do spray [no caso dos desodorantes] você pode danificar o produto".

O advogado explica que é importante que clientes tenham acesso aos produtos antes de chegar ao caixa, inclusive para identificar eventuais ingredientes que podem causar alergia, bem como quantidade de calorias e nível de açúcar.

"Direito de informação é básico. A gente insiste muito para que o consumidor tenha as informações de forma facilitada", diz.

Outro lado

Procurado, o supermercado Ricoy afirma que a prática para coibir furtos é disseminada não só pela rede, mas pelo varejo de forma geral. "As escolhas de itens são feitas através dos históricos de furtos e nunca por questões demográficas ou regionais."

O Dia Brasil afirma, em nota, que defende valores de proximidade, inclusão e diversidade. Por muitos anos, diz, as lojas tinham locais reservados para alguns itens específicos, mas está reformando paulatinamente as unidades, que terão todos os itens direto nas gôndolas, "independente do bairro ou região".

Já o Serrano diz que o confinamento de mercadorias com alto valor agregado e alta incidência de furtos é realizado de maneira idêntica em todas as lojas. Segundo a rede, a medida é autorizada pelos órgãos de Defesa do Consumidor e adotada também em lojas de vestuário, eletrônicos, papelaria e farmácias.

Os supermercados Beira Alta e supermercados Talento’s não responderam à reportagem.

O Extra diz que a questão da bandeja não faz parte da política de atendimento das lojas e considerou a prática uma falha interna da unidade em questão.

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