Das múltiplas desigualdades que estruturam o Brasil, a desigualdade racial ocupa lugar central. Afetando mais de metade da população brasileira, ela significa condições e oportunidades de vida substancialmente piores para pessoas negras, em comparação com as brancas.
Os dados são eloquentes no apontamento dessa disparidade: a renda média das pessoas negras é pouco mais da metade da das brancas, e sua taxa de pobreza é mais que o dobro da delas, compondo 75% dos pobres.
A taxa de homicídios de pessoas negras é quase o triplo da das brancas, e elas possuem menos anos de escolaridade e maior taxa de analfabetismo. Um cenário dramático agravado pela pandemia que, como reconheceu a CPI, afetou mais as pessoas negras. Além de terem adoecido e morrido mais, perderam mais empregos e renda, o que levou a um recorde na desigualdade racial no mercado de trabalho.
Esse abismo não nasce do acaso: é obra de séculos. Forjado na escravidão, manteve-se em grande parte graças à ação ou à omissão do Estado brasileiro.
Os exemplos são fartos: as políticas de embranquecimento, a desigualdade de oportunidades educacionais e de trabalho, a violência policial, o subfinanciamento dos serviços públicos, a perseguição às manifestações artístico-culturais e religiosas de matriz africana, a disseminação do mito da democracia racial. A eles soma-se certa apatia intelectual, que contrapõe classe à raça e ignora o gênero, como se o desenvolvimento econômico por si só tivesse o condão de resolver o racismo estrutural.
Não haverá verdadeira nação enquanto esse estado de coisas —inconstitucional, a propósito— perdurar. E ele não há, em hipótese alguma, de mudar naturalmente. Essa realidade só poderá mudar quando o Estado assumir uma postura explicitamente antirracista.
Assim, é imprescindível que o processo de reconstrução do país tenha o antirracismo como eixo orientador.
Após anos de destruição de políticas públicas, golpeadas diuturnamente pela inépcia, negligência e autoritarismo, faz-se necessário colocar a melhoria das condições socioeconômicas da população negra como centro da ação estatal. O mínimo esperado dos governantes do país mais negro fora da África é que seus planos e orçamentos sejam construídos a partir das especificidades e necessidades dessa população.
Tal desafio demandará planejamento minucioso, articulação política e gerencial de alto escalão, além de enfrentamento de privilégios normalizados.
E demandará, em especial, espaço orçamentário. Isso implica, primeiro, promover profundas reformas no atual arcabouço fiscal, o qual inviabiliza, para todos os fins práticos, a construção e o aperfeiçoamento de qualquer política pública de relevo. Implica rediscutir o sistema tributário, que onera proporcionalmente mais as pessoas negras. Implica resgatar e ampliar as políticas de promoção da igualdade racial, hoje praticamente exterminadas do orçamento, explicitando as parcelas do orçamento voltadas à garantia de seus direitos, o que permite o controle social ex ante e ex post.
Só haverá democracia se o Orçamento comportar a humanização e a cidadania da população negra.
E esse debate não pode começar apenas em 1º de janeiro de 2023. Ao contrário, deve iniciar-se imediatamente e ser tema central da próxima campanha presidencial. Não é razoável que se venha a postular o cargo máximo da República sem assumir um firme compromisso com um plano concreto para a promoção da equidade e para o combate ao racismo. Brasileiros negros estão fartos de serem enjeitados em sua própria terra.
Às vésperas dos 200 anos da Independência, é preciso refletir sobre o que fomos, o que somos e o que pretendemos ser. Qualquer projeto de reconstrução que seja merecedor dessa designação terá que tomar o enfrentamento às desigualdades raciais como fundamento da intervenção pública —e não como recorte acidental. É momento de o Estado parar de se omitir frente a esta agenda, pois, se pouco avançamos rumo a uma democracia racial substantiva, é chegada a hora de fazê-la acontecer.
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