Descrição de chapéu Pix Banco Central

Exclusão digital limita avanço do Pix entre os mais pobres

Falhas na conexão e celulares sem capacidade para suportar aplicativos são problemas, afirma quem estuda tecnologia e baixa renda

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São Paulo

Josefa Silva aproveita os poucos minutos de sinal fechado, em uma via movimentada na região central de São Paulo, para vender doces aos motoristas. Aos 66 anos, ela se esgueira entre os veículos, quando vê uma nota de R$ 2 oferecida em troca de uma pastilha —em alguns dias, é tão difícil ter alguém com dinheiro vivo que não dá para perder a venda, conta.

"Estou há pouco mais de um ano por aqui e sinto que muita gente não anda mais com dinheiro. Não tenho celular com internet e, mesmo se tivesse, não saberia usar Pix e essas coisas", diz. Conseguir vender já era difícil, agora virou uma torcida para achar alguém disposto a pagar com um trocado.

A vendedora de doces Josefa Silva, 66, que trabalha no centro de São Paulo
A vendedora de doces Josefa Silva, 66, que trabalha no centro de São Paulo - Douglas Gavras/Folhapress

A ampliação dos meios eletrônicos para pagamentos tem facilitado o cotidiano de muitos brasileiros. Ferramentas como o Pix, que completa um ano de operação nesta terça-feira (16), ajudaram a popularizar operações de transferências que antes eram restritas ao consumidor de maior renda, caso de TED e DOC, que pressupunham desembolso de tarifas.

No entanto, reforçam especialistas ouvidos pela Folha, esse avanço tem um efeito colateral para os mais pobres —como a vendedora Josefa.

Como essa camada da população sofre também com a exclusão digital, o aumento de transações virtuais pode até ampliar a exclusão financeira na baixa renda, caso não seja acompanhado de políticas públicas adequadas na área de tecnologia.

Limitações de conexão, falta de celulares com capacidade para suportar aplicativos e idade avançada são dificuldades apontadas por usuários que ainda não conseguem adotar com desembaraço ferramentas como o Pix.

Os números da pesquisa TIC Domicílios 2020, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, mostra que a maior parte dos brasileiros que dizem nunca usar a internet tem baixa instrução (72%), 60 anos ou mais (43%), ganha até um salário mínimo (24%) e mora em áreas rurais (26%).

De acordo com um estudo publicado no meio do ano pelo Cemif/FGV (Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira, da Fundação Getulio Vargas), os impeditivos para o uso dessa ferramenta por essa parcela da população são os mesmos que tiveram aqueles com direito ao auxílio emergencial (benefício pago aos mais pobres durante a pandemia) e que não conseguiam receber o recurso, explica o coordenador da instituição, Lauro Gonzalez.

Em 2020, eram 5,5 milhões os brasileiros sem emprego formal, conta bancária ou acesso regular à internet, segundo estudo do Instituto Locomotiva.

Os ganhos potenciais do Pix e do Open Banking são inúmeros, mas uma das barreiras é justamente a exclusão digital, diz Gonzalez. "As pessoas, sobretudo as de baixa renda, têm de transpor obstáculos, como conexões ruins, pacotes de dados muitas vezes caros demais e que acabam rapidamente e aparelhos celulares velhos que não suportam downloads de aplicativos."

Além dos problemas de oferta, diversos usuários também têm de lidar com a complexidade no manuseio e no uso de certos aplicativos. "Em alguns casos, o problema estrutural de baixa educação formal, de compreensão de texto e de matemática, acaba gerando novas barreiras."

No caso do artista Jorge Olaya, 50, a maior dificuldade no uso da tecnologia como meio de pagamento é a falta de conectividade. Apresentando-se em vagões do Metrô de São Paulo desde o início da pandemia, o peruano até tem um smartphone com o aplicativo instalado para receber gorjetas, mas faltam recursos para manter um pacote de internet melhor.

"Trabalho há mais de 20 anos com apresentações e tive de começar a tocar nas ruas, com o fechamento de bares e restaurantes, por conta da pandemia. A maioria até reabriu, mas o movimento está mais fraco do que antes e dependo desse complemento no Metrô."

O artista peruano Jorge Olaya, 50, que se apresenta no Metrô de São Paulo
O artista peruano Jorge Olaya, 50, que se apresenta no Metrô de São Paulo - Douglas Gavras/Folhapress

Maurício de Almeida Prado, diretor da Plano CDE, reforça que ainda que a aceitação e uso do Pix tenham surpreendido, principalmente pela velocidade com que a ferramenta se popularizou, o uso da tecnologia precisa crescer de maneira a não reforçar desigualdades.

"Em termos gerais, o Pix é mais um instrumento de inclusão financeira do que de exclusão, mas é preciso não esquecer desse público sem acesso regular a novos meios de pagamento, para não criar novos excluídos."

Gonzalez complementa que as exclusões digital e financeira tendem a se aproximar cada vez mais nos próximos anos, já que a possibilidade de atuar em serviços financeiros tem ido muito além das instituições tradicionais e diversas empresas de tecnologia já oferecem serviços financeiros, como Facebook e WhatsApp.

"Iniciativas que tratam de pensar em um aumento da cobertura de internet no país —e da qualidade desta cobertura, com serviços mais disseminados de wi-fi— se tornaram ainda mais relevantes. Outra ação importante seria forçar as empresas a criarem pacotes de dados em que o uso de serviços financeiros não seja cobrado dos clientes."

"Bancos digitais já estão entrando em favelas e esse é um nicho que ainda precisa ser descoberto por um número maior de empresas. O Pix, neste caso, pode ser um grande facilitador, dado que o alto valor dos meios de pagamento tradicionais limitava a inclusão financeira. Mas a ferramenta não resolve todos os problemas", diz Prado.

Ele completa que faz sentido o governo investir em ferramentas digitais, para ter menos papel moeda circulando e uma leitura melhor da economia informal. "Se, por um lado, vemos novas modalidades de golpe surgindo, com o tempo, o Pix também vai ajudar a entender os caminhos do dinheiro e pegar irregularidades. Só é preciso democratizar o acesso."

Segundo o Banco Central, além de ser um instrumento de baixo custo, seguro e que possa ser utilizado nas mais variadas situações de transferência e de compra, é necessário garantir que o Pix seja acessível inclusive aos que possuem necessidades específicas.

"O Banco Central definiu diretrizes de acessibilidade para a experiência do usuário. Adicionalmente, o BC atua como indutor da adoção de soluções, para que as instituições possam ofertar o Pix de maneira inclusiva. Alguns exemplos incluem a integração dos aplicativos aos leitores nativos dos celulares, o uso de avatares ou vídeos explicativos sobre Pix, o uso de assistente virtual em Libras, entre outros."

No final de outubro, o BC também deu início à implementação da terceira fase do open banking, abrindo caminho para que consumidores façam pagamentos com Pix por meio de empresas chamadas iniciadoras de pagamento, podendo fazer compras virtuais sem abrir aplicativo de banco.

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