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Bolhas são a natureza do capital de risco, afirma pesquisador dos EUA

Ecossistema empresarial é de extrema especulação, diz Martin Kenney, professor da Universidade da Califórnia

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São Paulo

O capital de risco —ou venture capital— financiou as empresas que estão na palma da mão de centenas de milhões de pessoas hoje. O custo do êxito foram anos de prejuízo, até que o lucro começou a aparecer e pagou aos investidores eventuais fracassos de outras companhias.

O caminho pode se repetir hoje com as empresas da vez: Uber, Nubank, WeWork. Ou não.

O professor da Universidade da Califórnia Martin Kenney diz que o modelo, criado nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, se expandiu após a bolha.com, colapso financeiro do final dos anos de 1990.

Os baixos custos de uma empresa de tecnologia aliados aos grandes investimentos dos fundos de capital de risco fazem com que companhias que nunca serão lucrativas prosperem por um longo período, sustenta o pesquisador.

"Em certo sentido, isso muda a economia", diz.

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Martin Kenney, professor da Universidade da Califórnia e pesquisador do impacto do capital de risco na economia - Arquivo pessoal

Em 2018, ele publicou com o colega de universidade John Zysman o artigo "Unicórnios, gatos de Cheshire e os novos dilemas do financiamento empresarial", uma referência ao gato de sorriso pronunciado do clássico "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Caroll.

"Tudo o que sobra é o sorriso. Muitas dessas companhias irão à falência, mas os investidores já estarão com o dinheiro, então não importa", diz ele à Folha quando questionado sobre o título.

O senhor defende que o atual modelo de investimento dos fundos de capital de risco está permitindo que empresas sustentem perdas por períodos muito longos, o que tem consequências para a economia. Pode explicar como chegou a essa conclusão? Os Estados Unidos são uma sociedade baseada em mercado de ações, como a Europa. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu a ideia de financiar pequenas firmas que ofereciam novas tecnologias para criar as empresas do futuro.

Esse foi um modelo de sucesso em lugares como o Vale do Silício. Se olharmos hoje para as empresas mais valiosas dos Estados Unidos, quase todas elas foram financiadas por capital de risco. Virou o modelo americano de inovação. Financiar novas firmas esperando que algumas delas sejam muito bem-sucedidas e reorganizem a economia. Cisco, Intel, Oracle, todos esses nomes são fruto de capital de risco. Abandona-se a velha indústria e move-se o dinheiro para as novas empresas.

Sempre houve competições desiguais e empresários que podiam perder dinheiro por muito tempo para derrotar seus concorrentes. O capital de risco muda as regras do capitalismo ou apenas as acentua? Hoje, nos Estados Unidos, nós formamos uma sociedade e uma economia para impulsionar as indústrias do futuro, e o capital de risco é parte desse modelo. Em certo sentido, isso muda a economia, porque quase todos os empresários querem começar uma companhia como essa. É assim que você consegue ganhos altos.

Isso significa que a manufatura não é mais interessante. Manufatura precisa de capital intensivo, é preciso muito dinheiro. É lento, você não lucra tão rapidamente. Criou-se uma nova economia em que você olha somente para ganhos no mercado de ações ao invés de ganhos pela indústria.

Em outras palavras, manter startups exige pouco capital, e os fundos têm muito dinheiro para investir, certo? Depende do quanto você pensa que é muito dinheiro. Precisamos entender que, hoje, como em 1999, estamos em uma bolha. Hoje os capitalistas de risco têm muito dinheiro para gastar cententas de milhões de dólares construindo a Uber ou a Lyft. Companhias que nunca serão lucrativas.

Estamos em um ecossistema de extrema especulação. Você não faz tanto dinheiro em títulos. Se quiser ter grandes ganhos, o jeito é investir em uma nova empresa e esperar que seja comprada. Aí você consegue dez ou cem vezes o que investiu. Quem colocou capital no Google teve US$ 1.000 para cada dólar que investiu. É muito atraente.

Em uma bolha no mercado de ações, até companhias que dão prejuízo podem ser listadas na Bolsa. Quando isso acontece, você, como um capitalista de risco, concluiu o seu trabalho. Você vende as suas ações e pronto, conseguiu o seu lucro. O que acontece com a companhia depois não é problema seu.

Perda de dinheiro não é inerente ao desenvolvimento tecnológico? Quando uma tecnologia nasce, nós não sabemos como será a sua recepção, se as pessoas vão se adaptar. Perdas são inerentes a qualquer nova empresa em seu começo. Mas os capitalistas de risco estão investindo em grandes perdas no começo —chamamos essa etapa de vale da morte— para depois ter ganhos massivos.

Você tem que ser a ferramenta de buscas do mundo, como o Google, fazer o semicondutor de todos os computadores, como a Intel. A ideia é usar essas perdas para construir a sua empresa —e construí-la muito rápido, para que seus competidores não consigam te alcançar— e começar a fazer promessas. E a grande promessa é: ao final de todo o prejuízo, o lucro será enorme.

Isso está relacionado com o modelo "winner takes all" [vencedor leva tudo], do qual o senhor fala em seu artigo. Sim. Há tanto capital no mercado que os fundos podem perder dinheiro por muito tempo. Em 1999, 2000, houve uma grande bolha de capital de risco [a bolha.com]. E ela colapsou. Centenas de milhares de empresas foram à falência. No mercado de ações, investidores de risco perderam bilhões.

A natureza do capital de risco é uma indústria impulsionada por bolhas. É necessário investir em uma empresa e vendê-la para o mercado de ações. E quando é o melhor momento para vender uma empresa ao mercado de ações? Quando há uma bolha. Quando tudo parece bem, como hoje.

O que acha das precificações que vemos hoje? São algo fora desse mundo, né? Claro, há empresas como o Google. O Google é um vencedor, mas há empresas que não são lucrativas. A questão é: por quanto tempo sobreviverão? Contanto que as ações estejam subindo, elas podem continuar a vender papéis e pagar suas operações.

E há outra questão: você nunca sabe quem será o vencedor. Quem diria que o Zoom seria o vencedor que vimos? Era uma companhia ok, nada especial. E então a pandemia veio e o Zoom decolou. Muitas dessas startups vão falir. Quando o capitalista de risco investe em tempos normais —não agora—, espera que cinco ou seis delas não rendam, para que com uma ou duas recupere o seu dinheiro. Mas se uma delas é o Google, todo o resto do prejuízo não importa. Você vai fazer mil vezes o capital que colocou ali.

Mas isso importa para a companhia, não? Para os funcionários. Os funcionários entram na companhia esperando a grande vitória, para que eles possam se aposentar e nunca mais trabalhar. Talvez se eu te desse a chance de gastar um ou dois anos em uma companhia com a chance de ganhar cem vezes o seu salário, você estivesse disposta a tentar. Você trabalharia muito, mas se fosse da companhia vencedora, acabou. Se não, bom, você perdeu dinheiro e tempo e vai tentar achar outro trabalho.

Nem todos fariam essa escolha. Mas no Vale do Silício e em outros lugares como esse, muitas e muitas pessoas estão dispostas a correr esse risco. Não apenas o capital de risco está disposto, pessoas muito inteligentes também estão, porque elas podem fazer uma fortuna que mudaria as suas vidas. Cria-se toda uma sociedade, toda uma economia, todo um modo de pensar ao redor dessa ideia.

É mais ou menos assim: há crianças no Brasil que querem ser o próximo Ronaldinho. A maioria delas tenta, tenta e não consegue nada. Mas uma ou duas conseguem. Elas não pensam em todas as outras que não alcançaram seu objetivo. Pensam: "Eu poderia ser como ele. Eu tenho que trabalhar mais do que todo mundo". É meio que uma economia de superstars, como o futebol. Há alguns bons jogadores, mas o dinheiro está mesmo nos Pelés. É uma mentalidade de estrela. Você não precisa ser ótimo. Não precisa ser rápido. Tudo o que tem que fazer é estar na companhia certa e trabalhar duro.

O senhor nomeou um artigo de 2018 de "Unicórnios, gatos de Cheshire e os novos dilemas do financiamento empresarial". Pode explicar? Você conhece o gato de Cheshire?

Sim, de "Alice no País das Maravilhas". Tudo o que sobra é o sorriso. Muitas dessas companhias irão à falência, mas os investidores já estarão com o dinheiro, então não importa.

E quanto à indústria tradicional? Depende da indústria. Podemos falar de varejo, jornalismo, locadoras de carros. Eu poderia falar de vários setores. Restaurantes, por exemplo. Eles têm que pagar por publicidade no Google, ou ninguém vai achá-los. Isso é uma espécie de imposto sobre todos os restaurantes do mundo. Para onde esse dinheiro vai? Ele fica no Brasil? Não, vai para o Vale do Silício.

Com tudo o que o senhor disse, o que podemos fazer? Acha que os governos têm um papel nesse cenário? O investimento de risco deveria ser mais regulado? Em um mundo em que queremos inovação, o capital de risco é importante, é um meio de alcançar a inovação. A questão é: o que os investidores de risco estão financiando? Deveríamos permitir uma companhia como a Uber no Brasil? Bom, há pontos positivos e negativos. Talvez uma correspondente brasileira da Uber fosse uma solução. E como garantir que os trabalhadores tenham um salário razoável?

No Brasil vocês têm seus próprios investidores de risco criando empresas. É melhor proibir empresas estrangeiras e ter apenas startups brasileiras para manter o dinheiro gerado dentro do país? A China tomou essa decisão. Países como o Brasil têm sido bem abertos com essas empresas. Não estou dizendo que foi uma decisão boa ou ruim, mas, como um país, é preciso pensar sobre isso.

Outra questão é: como taxar lucros de investidores de risco? Eles criam novas tecnologias, e muitas delas nós queremos, certo? Elas podem melhorar as nossas vidas. Mas quem deve receber uma parte dessa torta? Aumentamos os lucros com novas tecnologias, quem deve dividi-los?

Vivemos um momento de muito investimento na América Latina, especialmente no Brasil. Ao mesmo tempo, temos um cenário instável, muito incerto, com eleições no ano que vem. O que devemos esperar? Capitalistas de risco estão investindo como loucos na China. É muito estável, mas é um tipo de comunismo. Por quê? Porque há oportunidade. O Brasil é a maior economia de longe na América Latina. Pode haver caos, mas ainda há muita oportunidade. 200 milhões de pessoas é um mercado enorme.

Não importa quão louco seja o presidente, ou se é eleito um Lula, alguém mais socialista, a oportunidade está aí. Acredito que os investidores estarão olhando para o mercado, a não ser que as coisas fiquem muito instáveis. É claro que, quanto mais a sua economia cresce, mais atrativa é. Mas as características gerais do Brasil são, na minha opinião, muito atrativas. Os investidores continuarão a colocar investimento no Brasil enquanto houver oportunidades de grandes lucros.


Raio-X

Martin Kenney, 70
Professor da Universidade da Califórnia, é codiretor do grupo de pesquisa de economia internacional da instituição, fundado em 1982. Interessou-se pelos estudos de investimento de risco na década de 1980, durante seu doutorado

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