Descrição de chapéu Financial Times

Negros ainda lutam para conseguir empréstimos apesar de promessas de crédito

Um ano e meio após assassinato de George Floyd, indústria bancária não conseguiu resolver disparidade

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Gary Silverman Imani Moise
Newark e Detroit | Financial Times

O setor bancário dos Estados Unidos tem um ponto cego. Gabando-se das melhores capacidades analíticas que o dinheiro pode comprar e de trilhões de dólares de liquidez para investir, os credores comerciais na base da maior economia mundial ainda conseguem desprezar pessoas como Adenah Bayoh.

Bayoh é uma empresária afro-americana que atua em Irvington e na vizinha Newark, duas áreas principalmente negras de Nova Jersey próximas a Nova York, na outra margem do Rio Hudson. Ela chegou aos Estados Unidos com 13 anos, vinda da Libéria destruída pela guerra, e em três décadas montou uma carteira de imóveis e restaurantes que inclui um conjunto comercial e residencial em frente à prefeitura de Newark; quatro franquias da International House of Pancakes (IHOP); dois restaurantes de "soul food" chamados Cornbread e o primeiro de vários postos planejados de alimentos veganos Urban Vegan. Ela até participa de um conselho assessor do Banco Federal Reserve de Nova York.

Como se poderia esperar, Bayoh teve dificuldades para conseguir financiamento no início. Tudo o que tinha era uma ideia: que sua comunidade em Irvington incluía um número suficiente de apreciadores de panquecas, como ela, para sustentar sua própria IHOP. Quando ela tentou comprar um velho restaurante para transformá-lo em uma franquia dessa rede, diz que sete bancos lhe recusaram empréstimos. Ela só conseguiu em 2007, quando um diretor da IHOP interveio e a ajudou a obter crédito em um ramo de empréstimos da General Electric.

Cédulas de dólares no Tesouro americano, em Washington - Eva Hambach - 20.jul.2018/AFP

Nos anos seguintes, Bayoh diz que conseguir apoio bancário continuou sendo "a maldição" da sua vida. Em um momento em que os bancos podiam obter empréstimos da noite para o dia com taxas de juros de quase zero e emprestar para pequenas empresas com taxas ao redor de 5%, Bayoh habitualmente pagava mais por seu dinheiro ao usar outras fontes de crédito, que iam de beneficentes a predatórias. Ela diz que seus custos de empréstimos anuais chegavam a 30% quando ela recorria a adiantamentos sobre vendas futuras —em troca de uma porcentagem das receitas de cartão de crédito— para cobrir emergências.

Algumas semanas atrás, Bayoh diz que encontrou uma barreira num banco de Nova Jersey quando buscou ajuda para abrir um novo Urban Vegan. O credor tinha refinanciado o empréstimo da GE de sua primeira panquecaria em melhores condições, mas disse a ela que queria um "relacionamento depositório" antes de lhe conceder mais crédito. Ela disse ao banco que mudar suas contas seria difícil, porque a filial mais próxima do banco ficava num subúrbio de maioria branca a pelo menos 20 minutos de carro de seus restaurantes. Ela perguntou por que o credor não tinha filial em Irvington, e eles disseram que "não era seu mercado".

"Os bancos encontram uma maneira de dizer não a pessoas como eu", disse Bayoh. "Eu realmente fico nervosa quando preciso ir a um banco para pedir empréstimo. Eles não me conhecem. Adenah não existe para eles."

Superar a divisão com as Bayohs dos negócios tem sido uma prioridade para os bancos desde que o assassinato de George Floyd, no ano passado, chamou a atenção para as disparidades raciais nos EUA. De Wall Street à City de Londres, credores prometeram fornecer dezenas de bilhões de dólares em crédito e outras ajudas para destravar mecanismos de mercado que pudessem ajudar as comunidades não brancas.

Um ano e meio depois, a indústria bancária continua sendo parte do problema, mesmo enquanto trabalha em soluções. Os afro-americanos ainda lutam para conseguir o crédito bancário de baixo custo que os ajudaria a formar suas próprias empresas e reduzir a brecha de riqueza racial. A família branca americana média tem um patrimônio de US$ 188.200 (R$ 1 milhão), quase oito vezes mais que a família negra média —US$ 24.100 (R$ 136 mil), segundo a Brookings.

Mesmo os americanos negros bem-sucedidos são menos propensos a ter um número para ligar ou um nome para mencionar em um banco. Enquanto 54% das pequenas empresas de propriedade branca "saudáveis ou estáveis" tinham emprestado de um banco nos últimos cinco anos, só 33% de empresas semelhantes de propriedade negra o haviam feito, concluiu o Federal Reserve em sua última pesquisa de pequenas empresas, antes da pandemia. Ao todo, menos de uma em cada quatro empresas empregadoras de propriedade negra tinham tomado empréstimos de bancos, e esse número cai para uma em cada dez para proprietários individuais. Enquanto isso, quase 14% das famílias negras não tinham contas bancárias, comparadas com 2,5% das famílias brancas, segundo a Corporação Federal de Seguros de Depósitos (FDIC na sigla em inglês).

Por conta própria

Os empresários negros tendem a bancar a si próprios —mesmo quando já trabalharam em serviços financeiros. Foi o caso de Dawn Kelly, 59, que abriu um bar de sucos, shakes e saladas chamado The Nourish Spot quatro anos atrás, na área de Jamaica em Nova York, no bairro de Queens. Demitida pela seguradora Prudential Financial depois de 16 anos no setor de comunicações, Kelly usou seu pacote de demissão para alugar e reformar uma loja. Ela diz que não pediu empréstimo porque duvidava que algum banco apoiasse uma mulher negra correndo atrás de seu sonho.

"Estou por conta própria em minha firma desde o primeiro dia", diz ela.

Quando a Covid-19 chegou, a falta de relações bancárias atingiu com força as empresas de propriedade de negros. Para manter as pequenas empresas à tona durante o lockdown nacional, o governo federal desembolsou US$ 525 bilhões (quase R$ 3 trilhões) em 2020 por meio do Programa de Proteção aos Salários, usando bancos como principais intermediários no início. Sem as conexões certas, as empresas em áreas de minorias raciais receberam uma parcela desproporcionalmente menor da primeira rodada de ajuda.

Mais dinheiro fluiu para comunidades minoritárias mais tarde, quando outros credores aderiram ao esforço, mas a disparidade inicial teve um impacto. Entre fevereiro e abril de 2020, 41% das empresas afro-americanas encerraram as operações, comparadas com 32% das empresas de propriedade de latinos, 26% de asiáticos e 17% de brancos, segundo uma análise de dados federais do economista Robert Fairlie, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

"O dinheiro foi diretamente para instituições financeiras da corrente dominante, e elas basicamente o emprestaram para pessoas às quais estavam habituadas a emprestar", disse Ras Baraka, prefeito de Newark, Nova Jersey. "Muitas empresas negras e pardas não tiveram a chance de receber nada daquilo."

De maneira perversa, um dos motivos pelos quais os empresários de minorias têm tanta dificuldade para captar dinheiro em bancos é que eles precisam de muito pouco —algumas dezenas de milhares de dólares, em muitos casos. As empresas de propriedade negra geralmente são pequenas; 96% são operações individuais, segundo a Associação para Oportunidades Empresarial, e quase a metade são salões de beleza e barbearias ou serviços de creche, enfermagem doméstica e zeladoria.

Os bancos de hoje, em comparação, pensam grande. A busca por economias de escala ajudou a reduzir o número de bancos americanos de mais de 14 mil no início dos anos 1980 para 4.914 este ano, segundo a FDIC. Os grandes bancos que dominam o setor estão focados em meganegócios, mercados de massa e nos ultrarricos.

Negócios pequenos de qualquer cor são menos atraentes, já que para os bancos custa aproximadamente o mesmo processar seus pedidos de empréstimo que para os peixes grandes. Os empréstimos bancários nos EUA de US$ 1 milhão (R$ 5,6 milhões) ou menos para empresas e imóveis comerciais caíram de US$ 710 bilhões em 2008 para US$ 580 bilhões (R$ 3,2 tri) em 2013 e US$ 640 bilhões (R$ 3,6 tri) em 2019, segundo análise de dados da FDIC feita por Rebel Cole, professor na Universidade Atlântica da Flórida. Ele diz que o declínio teve "um impacto díspar em pequenas empresas de minorias raciais porque tendem a ser menores". Em contraste, empréstimos bancários para empresas semelhantes de mais de US$ 1 milhão aumentaram de US$ 1,56 trilhão (R$ 8,8 tri) em 2008 para US$ 2,75 trilhões (R$ 15,5 tri) em 2019.

"Em nossa comunidade, temos tanto medo de dívidas que nos arranjamos com muito pouco e realmente não damos lucro para um banco", diz Reign Free, fundadora afro-americana da Red Door Catering em Oakland, na Califórnia, que foi recusada pelo banco quando pediu um empréstimo para comprar seu primeiro furgão de entregas. "Era mais fácil conseguir empréstimo de US$ 250 mil que de US$ 50 mil —essa era a dificuldade."

Financiar pequenas empresas pode ser um trabalho duro para os bancos. Muitas vezes essas empresas não têm registros contábeis em ordem. Muitas evitam relatar receitas para escapar de impostos, mas mais tarde descobrem que isso as ajudaria a obter crédito. O que funciona em uma área pode não funcionar em outra, dizem os banqueiros.

"Não acho que você possa simplesmente despejar milhões de dólares em uma comunidade —você precisa estar no lugar, entender suas necessidades", disse René Jones, filho de mãe belga e pai afro-americano que é executivo-chefe do M&T Bank em Buffalo, Nova York, que recentemente prometeu US$ 43 bilhões (R$ 243,5 bi) em empréstimos e outros apoios para comunidades desprovidas.

"Gerações de famílias não tiveram acesso a capital ou propriedade de residências, por isso elas não sabem nem por onde começar. De certa forma, a coisa toda precisa ter um início muito diferente do que antes para gerar acesso a financiamento e capital."

Financiamento comunitário

Para oferecer crédito a comunidades minoritárias, os bancos muitas vezes trabalham com intermediários chamados Instituições Financeiras de Desenvolvimento Comunitário (CDFI na sigla em inglês). São credores privados designados pelo governo federal que canalizam capital para mutuários em áreas de baixa renda, enquanto fornecem assessoria financeira e outras assistências esperando que os receptores se tornem clientes bancários. Elas têm recebido bilhões de dólares de grandes bancos como JPMorgan Chase e Bank of America.

A CDFI típica é um fundo de crédito que empresta a maior parte de seu dinheiro de bancos, pagando taxas de juros de 3% ou menos. O resto de seus fundos vem de investidores, verbas de governos e entidades filantrópicas. Os bancos se beneficiam dos empréstimos a CDFI porque eles as ajudam a cumprir suas obrigações sob a Lei de Reinvestimento Comunitário (CRA na sigla em inglês), medida federal que visa evitar a prática de negar crédito a áreas de minorias, chamada "linha vermelha".

As CDFI geralmente cobram taxas de juros mais altas em empréstimos para pequenas empresas do que os bancos, porque seus mutuários são mais arriscados, segundo membros do setor. As taxas de juros das CDFI para empréstimos "na média" são de 5% a 12%, com taxas de origem de 0,3% a 2,5%, segundo o Fundo CDFI, ramo do Tesouro dos EUA criado em 1994 para apoiar esses créditos.

"Os juros que ganhamos com nossos empréstimos não pagam toda a nossa operação", diz Ray Waters, presidente do Fundo de Desenvolvimento de Detroit, uma CDFI. Os pedidos de empréstimos bancários geralmente são destinados a financiar empréstimos, acrescenta ele, o que significa que verbas de fundações têm um papel crítico para cobrir custos de pessoal e tecnológicos. "É como se nós mesmos precisássemos de ajuda."

As CDFI afirmam que suas taxas são muito menores que as alternativas com que contam muitas empresas pertencentes a minorias. A Accion Opportunity Fund, CDFI sediada em San Jose, na Califórnia, diz que donos de empresas refinanciadas enfrentam custos de empréstimos anuais de até 358%. A plataforma financeira online NerdWallet diz que os custos anuais de empréstimos para linhas de crédito para empresas americanas de US$ 6.000 (R$ 33,9 mil) a US$ 250 mil (R$ 1,4 milhão) ficam entre 10% e 99%.

Os credores predatórios "sobrevoam como urubus", disse Deanna Sison, uma filipino-americana coproprietária dos restaurantes Little Skillet e Victory Hall, em San Francisco, que recorreu ao Accion Opportunity Fund para ajuda no refinanciamento. "Eles sempre parecem saber quando você está em dificuldades."

Bayoh credita a CDFIs em Nova Jersey por ajudá-la a se recuperar após a crise financeira de 2008. Para levantar dinheiro para o sinal em seu primeiro restaurante, ela pegou hipotecas subprime sobre propriedades residenciais e perdeu várias por execução durante a recessão. "Tive um período escuro", diz ela. "Durante cinco, seis, sete, oito anos ninguém dizia sim para mim." Foi só quando ela descobriu as CDFI que começou a se expandir. "Quando você trata com CDFIs você lida com alguém que a conhece pelo nome", diz ela. "Eles estão na comunidade fazendo o mesmo trabalho que você."

O dilema que enfrentam as CDFIs é que para o modelo ter êxito seus mutuários precisam se graduar —tornar-se clientes bancários. Mas isso é raro, diz Luz Urrutia, executiva-chefe do Accion Opportunity Fund. Os bancos são ávidos para apoiar CDFIs para obter crédito pela CRA, mas hesitam em formar relacionamentos com seus mutuários, diz ela. Muitos de seus clientes apenas sobrevivem, com renda média anual de US$ 37 mil (R$ 211 mil).

"Você ficaria surpreso ao ver como poucos clientes vão das CDFIs para os bancos —os bancos não os tocam", diz Urrutia. "Nada mudou. Se alguma coisa mudou, está piorando por causa da percepção de que é difícil demais servi-los. Os bancos estão perdendo uma enorme oportunidade de ter um relacionamento pleno, redondo com essas empresas quando elas crescem e prosperam."

Os credores comunitários estão buscando maneiras de atuar melhor. Durante a pandemia, as CDFIs se uniram em esforços para fornecer empréstimos com taxas menores com a ajuda de Nova York, Califórnia, Washington e uma coalizão de estados do sul, aumentando as esperanças de criar novas abordagens para reduzir os custos de empréstimos.

Solução no mercado de capitais?

Outra possibilidade é encontrar dinheiro para empresas de minorias nos mercados de capital. Beth Bafford, vice-presidente de estratégia na Calvert Impact Capital, que trabalhou nas estruturas financeira do estado, diz que dados mais padronizados sobre desempenho de empréstimos de CDFI são necessários antes que os ativos possam ser usados para apoiar securities. Ela diz que um esforço do governo Joe Biden de investir US$ 10 bilhões (R$ 56,6 bi) em programas de financiamento estaduais e locais para pequenas empresas poderá ajudar a deixar os investidores mais confortáveis nesse ínterim, até que se conheça o risco real.

"Não conhecemos o risco real desses empréstimos, mas nossa hipótese é que seja muito mais baixo do que se pensa", diz ela. "Vamos usar uma fonte de subsídio para provar nossa tese, e daqui a dez anos poderemos precificar isso com maior eficiência."

Se Bafford estiver certa, os dados dirão algo semelhante ao que Bayoh diz hoje. Para ela, há mais que números em um pedido de empréstimo; antes que ela se tornasse empresária, tinha suportado a vida num campo de refugiados, dobrado roupas numa lavanderia, trabalhado como caixa de banco, vendido vestidos de noiva, tinha caído e se reerguido. "Tive experiências na vida", diz ela. Se os banqueiros olharem de perto, verão "alguém que sobreviveu e tem garra".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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