Vergonha de pedir NF leva país a perder pelo menos R$ 400 bi em tributos ao ano

Prefeituras e estados adotam programas que dão prêmios a contribuintes, mas adesão ainda é baixa

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Brasília e Curitiba

O morador da Vila Laís, zona leste da capital paulista, não tinha muitas pretensões quando pediu a nota fiscal a um eletricista. O objetivo era obter da imobiliária o ressarcimento pelo reparo de R$ 250, feito em um imóvel alugado. Mas, no último dia 6 de dezembro, o morador descobriu que a sua nota fiscal deu origem a um prêmio de R$ 2 milhões, dentro do programa Nota do Milhão, da Prefeitura de São Paulo.

Todo mês, desde 2017, a prefeitura paulistana sorteia R$ 1 milhão entre os consumidores cadastrados no programa —em dezembro, o prêmio dobra. São passíveis de serem sorteadas todas as notas emitidas por prestadores de serviços em São Paulo, independentemente de o consumidor ser morador da capital.

Entram na lista salões de beleza, barbearias, serviços de pet shop, academias de ginástica, estacionamentos, parques de diversão, escolas, faculdades, serviços imobiliários, entre outros. O objetivo é aumentar a arrecadação do ISS (Imposto sobre Serviços) que, só no acumulado de janeiro a novembro deste ano, trouxe R$ 21 bilhões aos cofres paulistanos. O problema é que quase ninguém pede nota fiscal.

Dos 12,3 milhões de moradores da capital paulista, por exemplo, apenas 645 mil estão cadastrados no programa da prefeitura —o equivalente a 5,2% da população.

Já a Nota Fiscal Paulista, criada há 14 anos pelo governo do estado de São Paulo para incentivar o recolhimento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), tem uma adesão maior: 52,5% dos 44 milhões de paulistas estão cadastrados no programa, que dá direito a resgate de créditos (para gastos acima de R$ 25), abatimento no valor do IPVA ou sorteios mensais (para quem gastou pelo menos R$ 100 no mês).

Mesmo assim, o número de novos consumidores cadastrados tanto na Nota Fiscal Paulista, quanto na Nota do Milhão, vem caindo ano a ano. No caso da nota paulista, houve um aumento em 2021, mas ainda ficou abaixo do patamar de 2019, antes da pandemia.

Da mesma maneira que a Prefeitura e o estado de São Paulo, dezenas de outros órgãos estaduais e municipais no país promovem programas para incentivar a arrecadação. Mas a não ser que o consumidor precise da nota para fins de troca ou garantia, ele raramente pede o documento, o que contribui para o aumento da sonegação no Brasil.

"Em muitos casos, o brasileiro considera grosseiro pedir a nota fiscal, especialmente em se tratando de serviços", diz Ricardo Teixeira, coordenador do curso de MBA em gestão financeira da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Segundo ele, o comportamento é fruto da nossa cultura amistosa, baseada mais na relação de confiança do que na mera troca comercial —em que uma parte presta um serviço e a outra paga por isso.

Neste sentido, chega a ser constrangedor pedir nota fiscal no barbeiro, na manicure ou no pet shop que fez o banho do cachorro, por exemplo. A cabeleireira Cláudia (nome fictício), 57, com quase 40 anos de profissão, atende em um salão em Santa Cecília, no centro da capital paulista. Ela diz que nunca concedeu uma nota fiscal pelos seus serviços —e nunca alguém lhe pediu.

"Ninguém deveria ter vergonha de pedir nota fiscal, porque no preço dos produtos e serviços o custo do imposto já está embutido", diz Teixeira. "Muitos consumidores têm a ideia de que iriam prejudicar determinado prestador de serviço se pedissem nota, mas não têm consciência de que este dinheiro deixa de vir para a infraestrutura pública, como iluminação e saneamento, ou serviços como educação e saúde", afirma.

O especialista lembra que os MEIs (Microempreendedores Individuais) também são beneficiados por uma legislação específica, com pagamento do imposto Simples, com alíquota menor. "Ninguém quer penalizar o profissional".

De acordo com Teixeira, a informalidade na economia brasileira é estimada em um terço do PIB (Produto Interno Bruto), que em 2020 foi de R$ 7,4 trilhões. "Desses R$ 2 trilhões do comércio informal, deixou-se de arrecadar entre R$ 400 bilhões e R$ 600 bilhões no ano passado, considerando a média de impostos municipais, estaduais e federais", afirmou.

"É um dinheiro que vira caixa dois para empresas", diz André Marques, coordenador do Centro de Gestão de Políticas Públicas do Insper. Com isso, o governo recebe menos do que deveria, mas as contas públicas precisam fechar —​uma situação que leva à criação de mais impostos para quem atua na legalidade, sejam pessoas físicas ou jurídicas.

"Quem sofre com essa sonegação são principalmente os mais pobres, que vão ficar sem moradia, transporte, educação e saúde, serviços pelos quais a classe média acaba pagando", diz Marques. "Muitas vezes, a gente pensa que se trata de uma arrecadação pequena, pelos valores envolvidos, mas são serviços prestados milhões de vezes ao ano, que geram um montante significativo".

Para Marques, além da questão da sonegação, estão problemas mais graves, como o roubo de cargas. "Se alguém me oferece por R$ 0,50 um chocolate que em média custa R$ 2, tem alguma coisa muito errada nesta conta", afirma. "Esse comércio só existe porque tem quem compre".

Na opinião de Ricardo Teixeira, cada vez mais a digitalização das operações vai contribuir para o aumento da fiscalização. "O simples ato de usar um cartão de débito ou crédito leva a maquininha, vinculada a um CNPJ, a registrar a movimentação no banco, o que facilita o rastreamento das operações", afirma.

No caso da Nota Fiscal Paulista, parte da baixa adesão ao programa se deve aos percentuais cada vez menores de repasse.

O programa começou em 2007 devolvendo até 30% do ICMS pago pelo estabelecimento. Em 2015, o percentual foi reduzido para 20% e, em 2017, a devolução passou a ser escalonada, entre 5% e 30% do ICMS, conforme o setor. As duas mudanças foram realizadas na gestão do ex-governador Geraldo Alckmin.

"Loucos da Nota Fiscal" não se sentem constrangidos em pedir documento

Enquanto a maioria dos consumidores se esquiva de pedir nota fiscal, tem gente que marca posição sendo exceção à regra. É o caso da psicóloga Ingrid Ferreira, 45 anos. "Sempre que algum atendente me pergunta se eu quero ficar com o comprovante do cartão, eu digo: ‘Não, só a Nota Fiscal já é suficiente’", diz ela, moradora de Indaiatuba, a cerca de 100 quilômetros de São Paulo.

"Eu percebo alguns olhares de censura ou impaciência, mas não vou abrir mão de um direito meu, que pode inclusive me beneficiar em alguns casos, como o desconto no IPVA", diz ela, referindo-se à Nota Fiscal Paulista. "Sei que as empresas pagam muitos impostos, mas não é por isso que vou deixar de pedir nota fiscal. Como profissional, eu também emito nota e pago imposto", diz.

Mulher vestida de branco e vermelho, usando máscara xadrez, segura uma nota fiscal amarela
Ingrid Ferreira, moradora de Indaiatuba (SP), faz compras no shopping Villa Lobos, na zona oeste da capital paulista: "Não abro mão de um direito meu, que pode me beneficiar com o desconto no IPVA" - Jardiel Carvalho/Folhapress

O auditor Francelino Valença é outro que não deixa de pedir NF em todas as ocasiões. "Sempre que vejo qualquer hesitação em emitir nota fiscal, já vou dizendo: ‘Não acredito que um estabelecimento tão reconhecido como este não emite nota fiscal’", afirma.

"A gente tem que virar o jogo: não somos nós os constrangidos em pedir, e sim eles em não fornecer o documento", diz Valença, diretor da Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) e morador de Brasília, onde vigora o Nota Legal —programa do governo do Distrito Federal que permite ao consumidor que pede nota fiscal receber créditos em dinheiro ou abater o valor sobre o IPTU ou IPVA.

Para Valença, é errado que a legislação brasileira considere pequena empresa, optante pelo Simples Nacional, quem fatura até R$ 4,8 milhões ao ano. "Isso é muito alto", diz. As alíquotas sobre o Simples variam de 4% a 19% sobre o faturamento, dependendo da receita bruta. "Quanto menos a empresa declarar que recebe, menos ela vai pagar imposto, o que acaba gerando situações em que uma grande empresa é dividida em pequenas, cada uma com um CNPJ diferente", afirma. "É um convite à evasão fiscal".

Homem de terno azul segura três notas fiscais na mão
Francelino Valença, diretor da Fenafisco, faz questão das NFs: "Se percebo alguma hesitação, pergunto logo se aquele estabelecimento, tão reconhecido, não emite nota fiscal" . - Pedro Ladeira/Folhapress

Com isso, no Brasil, o crime tributário não é visto com o mesmo rigor que o crime patrimonial, afirma. "É um conceito de cidadania enviesado, porque o não pagamento de tributos rouba direitos da população", diz Valença. "As pessoas têm que se sentir donas da coisa pública".

Na opinião do consultor econômico e especialista em finanças públicas Raul Velloso, a sonegação é fruto da falta de progressividade dos impostos. A prática tem forte relação com a percepção do contribuinte de que está pagando mais do que acha que deveria, afirma.

"O mais importante seria tentar cobrar menos impostos do maior número de pessoas. Dessa forma, elas pagariam sem sonegar e isso não reduziria a atividade econômica", diz o especialista, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento. "Aumentar impostos, ou apenas apertar a fiscalização em um país como o Brasil, acaba sendo um convite à sonegação", diz Velloso, para quem a baixa credibilidade dos governos estimula o comportamento do brasileiro de não pedir nota fiscal.

"Por mais que o imposto não recolhido tire recursos de áreas públicas importantes, o consumidor não vê justiça em boa parte da cobrança dos tributos. Ele vai pedir nota ao pobre encanador para depois o governo fazer orçamento secreto com seus impostos? Acho que não."

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