Economistas dos EUA se afastam do neoliberalismo e veem mais espaço para gasto público

Levantamento mostra inflexão em opiniões sobre igualdade e sustentabilidade

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São Paulo

Economistas americanos têm mudado sua visão sobre o papel dos gastos públicos e da distribuição de renda para o bem-estar do país, em um movimento que representa uma guinada no pensamento nesta área na maior economia do planeta.

Em um período de aproximadamente três décadas, o conceito de austeridade fiscal vem sendo substituído por uma nova abordagem, em que políticas governamentais são vistas como necessárias para garantir bem-estar e crescimento, combater monopólios e amenizar o impacto de mudanças climáticas e problemas sociais.

Cresce a avaliação de que o gasto público não é necessariamente um problema e o apoio a políticas governamentais que mitiguem a desigualdade de renda.

Manifestantes protestam contra absolvição de jovem que matou ativistas antirrascistas nos EUA - Jon Cherry 25.ago.2020/Getty Images/AFP

Os economistas também mostram uma visão positiva sobre temas como imigração, salário mínimo e controle de capitais, além de não estarem certos de que os Estados Unidos oferecem oportunidades suficientes para mobilidade social.

As conclusões fazem parte do artigo "Consenso entre economistas 2020", levantamento com 1.436 membros da Associação Americana de Economia feito em dezembro de 2020 e em janeiro de 2021.

O questionário online traz 46 proposições econômicas. Destas, 33 são as mesmas das pesquisas realizadas em 2000 e 2011; e 22 foram aplicadas também em 1990, ano em que o trabalho, iniciado na década de 1970, se tornou uma prática feita a cada década.

Entre os entrevistados, 67% se declaram acadêmicos, 13% estão na área de negócios, 11,5% fazem parte de órgãos públicos e 8,5% assinalaram atuar em outras áreas. Apenas 21% são mulheres.

O nível de consenso em torno de cada tema é calculado por meio de vários critérios técnicos pelos pesquisadores Doris Geide-Stevenson (também responsável pelas pesquisas de 2000 e 2011) e Alvaro La Parra Perez, ambos da Weber State University, de Utah (EUA).

Muitos dos novos temas incluídos no questionário em 2020 alcançaram "forte consenso" entre os participantes.

Entre eles, as afirmações de que a imigração geralmente tem um impacto positivo líquido para a economia dos EUA, que a mudança climática representa um importante risco econômico para o país e que lidar com preconceitos em indivíduos e instituições pode melhorar equidade e eficiência.

Também há forte concordância de que o poder econômico corporativo se tornou muito concentrado, e aumentou o percentual dos que avaliam ser necessário aplicar medidas concorrenciais de forma vigorosa.

Há consenso "substancial", um grau abaixo do "forte", para a afirmação de que as diferenças nos resultados econômicos entre brancos e negros são em grande parte devido a normas discriminatórias.

No geral, o trabalho mostra que cresceu o número de questões nas quais há um forte consenso entre os economistas, do patamar de cerca de 10% a 15% de 1990 a 2011 para mais de 30% em 2020.

Entre os grandes consensos, estão alguns temas caros ao pensamento econômico liberal, como o apoio a políticas de câmbio flutuante e abertura comercial.

Mas houve mudanças importantes na visão sobre a questão fiscal. Para 63%, uma política de gastos adequadamente projetada pode aumentar a taxa de longo prazo de crescimento econômico, ante 52% em 2011.

Há também agora forte discordância de que a gestão do ciclo econômico deve ser deixada para o banco central dos EUA (o Federal Reserve), por meio da política monetária, e que uma política fiscal ativa deve ser evitada.

O apoio à visão de que um grande buraco orçamentário tem efeito adverso sobre a economia caiu de 86% em 1990 para 61% em 2020. Também cresceu o percentual daqueles que avaliam que a redistribuição de renda é um papel legítimo do governo (de 74% em 1990 para 86%).

"Economistas agora abraçam o papel da política fiscal de uma forma não óbvia em pesquisas anteriores e são amplamente favoráveis a políticas governamentais que mitigam a desigualdade de renda", afirmam os pesquisadores.

Os dois dizem que é necessário aprofundar o trabalho para chegar a uma explicação sobre essas mudanças, mas citam como hipótese que isso pode estar relacionado a novas pesquisas e avanços na literatura econômica.

O professor André Biancarelli, diretor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), afirma que a sondagem reflete uma mudança que vem ocorrendo desde a grande crise financeira de 2008 no pensamento dos economistas mais bem posicionados no debate, não só no meio acadêmico, mas também na interação com a política econômica e em instituições multilaterais.

Nesse período, as grandes economias apostaram em políticas de taxas de juros muito baixas, ou até negativas, mas o estímulo monetário não foi suficiente para recuperar o crescimento.

A pandemia reforçou essa percepção, como pode ser visto nos discursos do FMI (Fundo Monetário Internacional) e em ações de governo nos EUA e na Europa, diz Biancarelli.

"Os governos foram recorrer ao que se tem no estado da arte da discussão econômica, e descobriu-se que os economistas mais influentes já não pensavam de uma maneira tão rígida, de que é preciso cortar gastos, preocupados só com a sustentabilidade", afirma.

"O ambiente intelectual dominante nos EUA e na Europa em relação à política fiscal já tinha mudado antes da Covid. A pandemia escancarou isso na prática."

Você sai daquele ambiente de fiscalismo dos anos 1990, do Consenso de Washington, e caminha para um questionamento desses temas, principalmente nas políticas fiscal e monetária e em questões ambientais, de concorrência e de desigualdade

José Francisco de Lima Gonçalves

professor do Departamento de Economia da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP)

José Francisco de Lima Gonçalves, professor do Departamento de Economia da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP), afirma que a sondagem mostra o resgate de algumas questões escanteadas do debate econômico desde os anos 1970.

"Você sai daquele ambiente de fiscalismo dos anos 1990, do Consenso de Washington, e caminha para um questionamento desses temas, principalmente nas políticas fiscal e monetária e em questões ambientais, de concorrência e de desigualdade", afirma.

"Isso não estava na agenda dos anos 1980. Hoje, não tem como não estar. O que vejo de mais interessante nessa pesquisa é que esses temas passam a ser examinados de uma maneira mais rica. Mais humilde, pelo menos."

Biancarelli e José Francisco afirmam que não se pode falar no fim da predominância de uma visão econômica mais ortodoxa, classificada em geral como liberal ou neoliberal. Também dizem que é necessário cuidado ao rotular a nova visão como keynesiana ou desenvolvimentista.

O diretor do Instituto de Economia da Unicamp vê "alguma inspiração mais keynesiana", no sentido de que a política fiscal pode ajudar no crescimento em um ambiente de juros baixos, desde que criteriosamente focada em distribuição de renda e investimento no aumento da capacidade produtiva.

José Francisco, da FEA, afirma ver ainda um debate interditado, principalmente no Brasil, que permita uma mudança mais profunda de políticas econômicas. Ele diz também que o ambiente global de inflação alta favorece os que defendem uma ênfase maior no papel da política monetária e limites para a atuação na área fiscal.

"Não tenho a menor ilusão de que esse ambiente mais rico de oportunidade de reflexão não vai acontecer neste ano. Como não aconteceu nas eleições de 2020 nos EUA."

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