Candidato 'dublado' em entrevista de emprego mostra impacto da Covid no processo de seleção

Psicólogos dizem que quase todo mundo usa artifício para obter posição no mercado de trabalho

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Emma Goldberg
Nova York | The New York Times

É como se uma trama de "Seinfeld" encontrasse John Le Carré.

Kristin Zawatski, 44, que trabalha com tecnologia da informação em um departamento que tem cerca de 70 empregados, estava ajudando a conduzir uma entrevista virtual de emprego. Ela disse que estava impressionada com a compreensão firme do candidato quanto aos requisitos técnicos do posto. Mas, lá pelos 15 minutos da conversa, um de seus colegas pausou o áudio da entrevista.

"A pessoa que está respondendo às perguntas não é a pessoa que está diante da câmera", ele declarou, de acordo com a lembrança dela sobre o incidente, o que causou exclamações de espanto dos participantes.

O colega de Zawatski tinha reconhecido a voz vinda da tela e percebido que quem estava respondendo às perguntas técnicas era alguém que ele conhecia, enquanto o candidato ao emprego movia os lábios na tela –algo que o amigo do candidato tinha acabado de admitir em uma mensagem de texto.

figura de homem com camisa rosa, gorro amarelo, tendo um plano azul ao fundo
Candidatos amam dizer que buscam autenticidade. Mas a verdade é que todos os candidatos são pessoas comuns. - Hannah Agosta/The New York Times

"O que ele achava que ia acontecer, quando se mudasse para o outro lado do país e percebesse que não tinha competência para fazer o trabalho?", Zawatski ponderou, mais tarde.

Entrevistas de emprego sempre exigiram um par de qualidades um tanto incongruentes: autenticidade mas ao mesmo tempo causar a impressão de um bom preparo. Os guias para entrevistas de emprego recomendam que candidatos mostrem o que têm de melhor. Os recrutadores encorajam as pessoas a serem genuínas, e até a se divertirem com o processo. ("O surpreendente segredo para o sucesso em uma entrevista de emprego é: seja você mesmo", afirma um dos conselhos típicos).

E essa combinação de recomendações pode ser complicada psicologicamente, e levar os candidatos a emprego a imaginar como é que eles podem ao mesmo tempo transmitir uma ideia de suas personalidades falhas –são pessoas comuns, que deixam a louça suja empilhada na pia - e ao mesmo tempo se vangloriar de suas capacidades geniais na matemática, domínio de múltiplos idiomas, talentos de liderança, maestria no uso de software, ou seja lá o que for.

"É fácil apresentar a você mesmo como você gostaria de ser, em oposição a como realmente é", disse Robert Feldman, psicólogo da Universidade de Massachusetts Amherst e autor de "The Liar in Your Life". Ele acrescentou que as pessoas tendem a tendem a aprender desde cedo as vantagens que mentir um pouco confere.

As crianças são ensinadas que, quando a avó lhes dá de presente um casaco incrivelmente feio, elas devem agir como se tivessem acabado de ganhar um PlayStation, disse Feldman. E à medida que envelhecemos, as recompensas da mentira crescem –especialmente em entrevistas de emprego, quando existe dinheiro na mesa.

Os processos remotos de contratação deram a alguns candidatos a emprego a impressão de que podem usar formas extremas de desonestidade e escapar ilesos. Entrevistas virtuais deixam aberta a possibilidade de que um candidato obtenha respostas de um amigo.

Entrevistas por telefone podem criar uma distância psicológica entre entrevistador e entrevistado, apontou Feldman, o que talvez torne mais fácil para as pessoas racionalizar a ideia de se representarem falsamente. Ao mesmo tempo, as pessoas agora passam por muito mais entrevistas do que no passado, já que cerca de 20% dos trabalhadores empregados nos Estados Unidos mudaram de emprego voluntariamente em 2020.

Ainda assim, os recrutadores sabem que é preciso esperar algum exagero, no processo de contratação. É algo que até a cultura pop reconhece. "Fluente em finlandês?", uma amiga que está lendo seu currículo pergunta à personagem de Isla Fisher em "Os Delírios de Consumo de Becky Bloom". A personagem responde: "Todo mundo enfeita um pouco o currículo".

Psicólogos que estudam entrevistas apontam que pode haver uma ampla gama de comportamentos não autênticos em jogo. A maior parte dos candidatos a emprego usa uma técnica conhecida como "administração de impressões", no processo de entrevista, o que quer dizer que eles estão pensando em como apresentar a melhor versão de si mesmos, de acordo com Joshua Bourdage, psicólogo organizacional na Universidade de Calgary, e Nicolas Roulin, psicólogo organizacional na Universidade Saint Mary’s.

Mas existem versões honestas, relativamente honestas e completamente enganosas disso. Buscar aceitação enganosamente pode envolver rir de piadas sem graça, enquanto fazê-lo honestamente pode envolver se conectar com o entrevistador quanto a interesses realmente compartilhados, como "hiking" ou assistir aos jogos do New York Knicks.

A criação de imagem moderada quer dizer inflar só um pouquinho as próprias capacidades (talvez transformar uma viagem de camping em uma verdadeira paixão por conviver com a natureza), enquanto a criação de imagem extensiva significa criar histórias sobre falsas realizações (incluir naquela história sobre camping uma briga a socos contra um urso). Cerca de dois terços dos candidatos a emprego buscam aceitação enganosamente, e mais de metade admite recorrer à criação moderada de imagem, de acordo com as pesquisas de Bourdage e Roulin.

A probabilidade de que as pessoas recorram a essas práticas depende de até que ponto desejam um emprego, e também de o quanto elas confiam em que podem mentir sem serem apanhadas. Pesquisas demonstraram que os americanos têm maior probabilidade de recorrer a táticas enganosas em entrevistas de emprego do que os europeus ocidentais, e essas práticas são mais comuns em certas áreas do nordeste do país e na Califórnia do que em outras regiões dos Estados Unidos.

Determinar se os empregadores percebem ou não esses comportamentos contestáveis pode depender do nível de desespero que eles tenham quanto a preencher postos de trabalho No momento, com as ofertas de emprego em alta e o desemprego em baixa, muitas companhias enfrentam dificuldades para encontrar talentos.

"Existe muita demanda por aí, e pouca gente capacitada para satisfazê-la", disse Ben Zhao, professor de ciência da computação na Universidade de Chicago que pesquisa sobre mercados online, acrescentando que o desequilíbrio no mercado de trabalho pode pressionar as empresas a realizar contratações mais arriscadas. "Isso as torna mais suscetíveis a representação enganosa ou fraude".

Os empregadores também estão enfrentando um momento em que a angústia coletiva resulta em toda espécie de desvios de comportamento incomuns. Isso é algo que Tamara Sylvestre, 32, disse ter percebido no ano passado, quando estava trabalhando em recrutamento de pessoal para uma empresa de recursos humanos sediada em Michigan e entrevistou uma pessoa para um posto em um departamento de engenharia. Ela fez uma entrevista inicial por telefone, na qual reparou que a voz do candidato era bem aguda. Quando conduziu uma entrevista técnica subsequente por vídeo, a voz dela parecia mais grave.

Sylvestre perguntou mais tarde por que o tom de sua voz parecia ter mudado, e o candidato admitiu que tinha pedido a um colega que fizesse a entrevista em vídeo em seu lugar.

"E o que você pretendia fazer se conseguisse o posto?", Sylvestre se lembra de ter perguntado ao candidato, espantada. "E ele respondeu que estava muito nervoso, e que achou que ninguém iria reparar. E já que o trabalho era 100% remoto, talvez não fizesse diferença".

Mark Bradbourne, 46, que trabalha como engenheiro no Ohio, se lembra de um trapaceiro que avançou ainda mais no processo de contratação, alguns anos atrás. Bradbourne pediu a um novo empregado, em sua primeira semana na empresa, que realizasse um exercício de visualização de dados semelhante ao que ele tinha feito em sua entrevista técnica. O novo contratado não sabia como proceder. Quando Bradbourne o lembrou de que já tinha feito a mesma tarefa durante o processo de contratação, o homem se levantou e saiu correndo da sala, e pediu demissão na hora.

Persuadir um amigo a participar da parte técnica de um processo seletivo é uma variação extrema do velho truque de blefar na entrevista. Mas os psicólogos organizacionais observam que os entrevistadores tendem a premiar a honestidade. Eles reconhecem quando as pessoas parecem se enquadrar genuinamente aos aspectos de uma empresa que ecoam seus interesses, disse Bourdage

Os entrevistadores também estão ficando mais espertos na detecção de desonestidade. A Meta, antes Facebook, tem psicólogos em sua equipe que desenvolvem perguntas qualificativas cujas respostas um candidato teria dificuldade para blefar. Scott Gregory, presidente-executivo da Hogan Assessment Systems uma empresa de teste de personalidade, encoraja os empregadores a abandonar perguntas clássicas usadas em entrevistas —"quais são seus pontos fortes?"– e em lugar disso que façam perguntas situacionais e comportamentais nas quais os candidatos narram experiências ou exploram cenários hipotéticos.

A recrutadora chefe da Meta disse que a companhia espera que candidatos a empregos liguem suas câmeras durante as entrevistas por vídeo, embora aceite pedidos em contrário, em circunstâncias que tornem difícil atender ao pedido.

Ainda assim, os estresses mais sutis de um professo de entrevista permanecem. Em uma cultura empresarial na qual um dos termos populares do momento é transparência, quanto de sua personalidade real uma pessoa deve revelar, antes de ser contratada? Será que a pessoa deve ser ela mesma quando ser ela mesma poderia impedi-la de conseguir o emprego?

"A linha que separa ser pouco profissional, casual demais, ou descontraído demais do eu autêntico do candidato é muito fina", disse Miranda Kalinowski, vice-presidente mundial de recrutamento da Meta.

Tradução de Paulo Migliacci

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