Criptocasal é divisor de águas nos crimes com bitcoins

Dupla é acusada de formar quadrilha para lavar bilhões de dólares em criptomoeda

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Ali Watkins Benjamin Weiser
Nova York | The New York Times

Quando hackers anônimos se infiltraram na Bolsa de criptomoedas Bitfinex em 2016, causaram um abalo no mundo incipiente da moeda digital, provocando especulações sobre quem poderia ter roubado o que era então US$ 71 milhões em bitcoins.

Diferentemente das transações financeiras tradicionais, porém, as negociações de bitcoins são publicamente visíveis; movimentar as moedas poderia revelar quem estava por trás do assalto. E assim, durante seis anos, à medida que o valor do bitcoin disparava, o roubo se tornou visível online, conforme pequenas frações da quantia gigante ocasionalmente desapareciam em uma nevasca de transações complexas.

Era como se o carro de fuga de um assaltante estivesse permanentemente estacionado em frente ao banco, bem trancado, com o dinheiro ainda dentro.

Então, no início deste mês, o carro saiu em disparada.

De pé e abraçado, o casal Heather Morgan e Ilya Lichtenstein, que se envolveu em esquema de fraude com bitcoin
O casal Heather Morgan e Ilya Lichtenstein, que se envolveu em esquema de fraude com bitcoin - Heather Reyhan no Instagram

No mundo estranho e às vezes obscuro da criptomoeda, foi como um terremoto. Nos anos após a invasão da Bitfinex, a criptomoeda explodiu na corrente dominante e o roubo se tornou notório: uma bolada de mais de US$ 4 bilhões (R$ 21 bilhões). Finalmente parecia que os hackers tinham saído do esconderijo.

Mas não foram os hackers que moveram o bitcoin roubado. Foi o governo, que o apreendeu como parte de uma investigação sobre dois empresários da cidade de Nova York: um desconhecido emigrante russo e investidor em tecnologia e sua mulher, uma empresária americana e aspirante a influenciadora de rede social com uma segunda personalidade como rapper satírica chamada Razzlekhan.

Acusado de formar quadrilha para lavar bilhões de dólares em bitcoins, o casal Ilya Lichtenstein, 34, e Heather Morgan, 31, foi indiciado por desviar partes da moeda roubada e tentar escondê-la em uma complexa rede de carteiras digitais e personagens da internet. Se forem condenados por esta e uma segunda acusação de conspiração, eles poderão pegar até 25 anos de cadeia.

As detenções chocaram alguns conhecidos do casal, cujas vidas sem graça online pareciam conflitar com a descrição deles feita pelos promotores, de criminosos sofisticados com montes de moeda estrangeira, várias identidades falsas e dezenas de dispositivos criptografados escondidos em seu apartamento em Nova York.

Enquanto aguardavam uma audiência na segunda-feira (14) em Washington sobre se devem ser libertados sob fiança, Lichtenstein e Morgan permanecem gerando uma pergunta intrigante: eles poderiam realmente estar no centro de um dos mais antigos mistérios da criptomoeda?

As acusações foram um divisor de águas na regulamentação em curso da moeda digital e, para alguns, um passo à frente na capacidade do governo de rastrear sua lavagem ilegal.

"O criptoespaço sempre foi visto como um refúgio seguro para criminosos", disse Christopher Tarbell, ex-agente especial do FBI que ajudou na investigação do Silk Road, um mercado online de drogas ilegais e outros bens ilícitos.

"Estamos vendo agora que a polícia tem o conhecimento, as ferramentas e a capacidade de oferecer certas explicações sobre o novo 'oeste selvagem' do crime cibernético", disse Tarbell.

As autoridades não disseram se acreditam que Lichtenstein e Morgan estiveram diretamente envolvidos na invasão da Bitfinex. Mas suas prisões revelaram as franjas obscuras da cultura criptológica, onde a linha divisória entre empreendimentos financeiros virtuais sofisticados e piadas infantis online é tênue e está em constante mudança.

Sandra Ro, que lidera o Global Blockchain Business Council, associação setorial que defende a adoção de mercados de criptomoedas, disse que as prisões "atuam sobre a narrativa de que a comunidade cripto é povoada por personagens duvidosos e marginais, o que não é verdade".

"Há adultos na sala", disse Ro, "que estão construindo produtos e serviços reais para cultivar uma indústria multitrilionária com responsabilidade."

Para muitos que acompanham a indústria, Lichtenstein e Morgan pareciam personagens familiares em um reino onde a fortuna favorecia os investidores mais ousados; as personalidades mais chamativas enriqueciam rapidamente; e um único tuíte mal-intencionado podia abalar mercados inteiros.

Quase imediatamente após as prisões, a comunidade hiperativa que discute criptomoedas nas redes sociais e em fóruns de mensagens começou a se debruçar sobre a bizarra trilha digital de Morgan. Seus vídeos —pouco assistidos antes de ela ser acusada— de repente estavam sendo amplamente compartilhados.

Num deles, aparentemente gravado durante um café da manhã, Morgan se espanta com o tamanho de seu prato de panquecas, zomba, mostra a língua e acena com os dedos antes de anunciar que está fazendo um comentário sobre o consumismo e a natureza superficial das redes sociais.

A invasão da Bitfinex já era lendária, mas Lichtenstein e Morgan dificilmente pareciam ser ladrões digitais suaves ou sutis —ou a ponta de uma grande conspiração.

Ao compartilhar o vídeo das panquecas, uma conta no Twitter tipicamente irreverente que comenta os mercados financeiros de ponta em uma paródia do Incrível Hulk capturou uma reação comumente manifestada: "Ok. Os hackers não são a CIA. Eles são idiotas".

Morgan era uma colaboradora regular da revista Forbes, escrevendo colunas que aconselhavam seus colegas empreendedores sobre como proteger sua moeda digital e recomendando o rap como uma forma de cuidados pessoais, como ela fazia através de seu alter ego, Razzlekhan (Genghis Khan, mas com mais pique, segundo o site).

Pessoas que conhecem Morgan disseram que seus improvisos nas redes sociais faziam parte de um número elaborado para enfrentar as pressões sociais.

"Ela trabalha para se libertar de muitos dos roteiros que estão embutidos em nossa sociedade", afirmou Morgan Brittni Sonnenfeld, que diz ser prima de Morgan. "Eu a admiro por isso; ela é muito forte." Sonnenfeld reconheceu que a cobertura na mídia sobre Morgan a fez "parecer meio louca", e ela se perguntou se a personalidade de Morgan pode ter chamado a atenção das autoridades.

"Eu me pergunto: por que eles querem que as pessoas olhem para ela? Para quem não estamos olhando? Por que eles escolheram essa pessoa específica?", indagou Sonnenfeld.

As prisões também surpreenderam os amigos de Morgan, que a descreveram como uma colega incrivelmente honesta em uma indústria definida pela concorrência violenta.

"É muito chocante pensar que alguém tão aberto e vulnerável com as pessoas tivesse segredos", disse uma amiga, Nora Poggi. "Ela é uma pessoa muito importante para mim."

Nos registros do tribunal, o Departamento de Justiça descreve a trilha que teria levado os investigadores a Lichtenstein e Morgan.

Em janeiro de 2017, cinco meses depois que os hackers atingiram a Bitfinex, uma parte do que eles roubaram foi transferida em transações pequenas e complexas para contas controladas pelo casal, segundo uma queixa criminal apresentada em um tribunal federal em Washington.

"Esse embaralhamento, que criou um número volumoso de transações, parecia ter sido projetado para ocultar o caminho do roubo" de bitcoins, diz a queixa.

Lichtenstein e Morgan eram empreendedores de tecnologia na época. Lichtenstein se especializou em criptomoedas e codificação, de acordo com seu perfil no LinkedIn, e Morgan tinha voltado do Oriente Médio, onde se concentrou nos mercados de câmbio.

Anirudh Bansal, advogado do casal, recusou um pedido de entrevista. Mas em documentos judiciais ele deixou claro que acredita que o caso do governo é fraco e se baseia em "saltos conclusivos e sem suporte".

Além da personalidade altamente pública de Morgan, pouco se sabe sobre o casal. Eles estão juntos há sete anos e casados há três, disse Bansal a um juiz federal em Nova York na terça-feira (8), durante discussões sobre se o casal deveria ser libertado sob fiança.

Ao dizer que seus clientes não apresentavam risco de fuga, Bansal forneceu alguns dados pessoais sobre eles.

Lichtenstein, disse o advogado, foi da Rússia para os Estados Unidos quando tinha seis anos. Seu pai trabalha para a agência habitacional do condado de Cook, em Illinois, e sua mãe é bioquímica na Universidade Northwestern.

Morgan, que nasceu em Oregon, administra uma empresa de consultoria que emprega até 30 redatores freelance, disse Bansal. Seu pai serviu nas Forças Armadas dos EUA e é um biólogo aposentado. Sua mãe é uma bibliotecária do ensino médio.

A família de Lichtenstein migrou para os Estados Unidos para fugir da perseguição religiosa, e não havia "a menor chance" de ele retornar à Rússia, disse Bansal.

Em uma carta posterior, outro advogado do casal escreveu que Morgan havia congelado vários de seus embriões em um hospital em Nova York, na expectativa de formar uma família.

"O casal nunca fugiria do país sob o risco de perder o acesso à sua capacidade de ter filhos", escreveu o advogado.

Na audiência, uma promotora, Margaret Lynaugh, se opôs à fiança de Lichtenstein, que tem dupla cidadania dos EUA e da Rússia, porque ele tinha um passaporte russo ativo e os meios e a intenção de fugir.

O juiz ordenou que o casal fosse libertado sob fianças milionárias, mas, a pedido do governo, um juiz federal de Washington bloqueou sua libertação e marcou a audiência para segunda-feira.

Em documentos judiciais, o governo chamou Lichtenstein e Morgan de "criminosos altamente sofisticados". Os promotores disseram acreditar que o casal tinha ativos adicionais significativos, incluindo centenas de milhões de dólares em moeda virtual roubada da Bolsa Bitfinex que não haviam sido recuperados, além de acesso a inúmeras identidades falsas compradas na chamada darknet, uma parte oculta da internet utilizada para transações ilícitas.

O governo diz que o casal também abriu contas financeiras na Rússia e na Ucrânia e parecia estar montando um plano de contingência para viver num desses países antes da pandemia.

Como evidência do que eles descreveram como um complexo esquema de lavagem de dinheiro, a promotoria disse em um processo judicial que rastreou a criptomoeda roubada em mais de uma dúzia de contas com os nomes verdadeiros do casal ou de suas empresas.

O governo diz no processo judicial que, quando os agentes executaram um mandado de busca no apartamento do casal em Nova York, em 5 de janeiro, recuperaram mais de 50 dispositivos eletrônicos, incluindo uma bolsa com a etiqueta "telefone descartável" e mais de US$ 40 mil em dinheiro. Muitos dos dispositivos estavam parcial ou totalmente criptografados ou protegidos por senha, diz o processo judicial.

No escritório de Lichtenstein, os agentes encontraram dois livros ocos cujas páginas pareciam ter sido cortadas à mão para criar compartimentos secretos, diz o processo. (Os compartimentos estavam vazios.)

E ainda havia o gato do casal.

Quando os agentes estavam prestes a começar a busca, Morgan e Lichtenstein disseram que sairiam do apartamento, mas queriam levar seu gato, diz o processo. Os agentes permitiram que Morgan apanhasse o gato, que estava escondido embaixo da cama.

Mas quando Morgan se agachou ao lado da cama e chamou o gato, ela se posicionou ao lado de uma mesa de cabeceira onde estava um de seus celulares, diz o documento. Então ela estendeu a mão, pegou o telefone e apertou repetidamente o botão de bloqueio, no que, segundo os promotores, foi uma tentativa de impedir que os investigadores pesquisassem o conteúdo do telefone.

Os agentes tiveram que arrancar o aparelho das mãos de Morgan. Os registros do tribunal não deram mais informações sobre o gato.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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