Descrição de chapéu Financial Times Guerra na Ucrânia Rússia

Guerra impacta produção de carros, aviões e alimentos; entenda

Invasão da Ucrânia pela Rússia leva a risco de interrupção de exportações e tem consequências comerciais

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Financial Times

A invasão da Ucrânia pela Rússia encerra o risco de interromper a exportação de matérias-primas críticas e romper as cadeias de abastecimento, advertiram especialistas, enquanto empresas multinacionais que operam na região se preparam para as consequências.

Uma disrupção das exportações russas atingiria um amplo leque de indústrias, de fertilizantes a fabricantes de alimentos, automóveis e aeronaves.

Embora a Rússia seja mais conhecida como grande exportadora de petróleo e gás, assim como a Ucrânia, também é um importante fornecedor mundial de grãos. Os dois países respondem por quase um terço das exportações mundiais de trigo.

Carros de exército passando em fila em rua
Veículos do exército ucraniano passam pela região central de Kiév, na Ucrânia - Daniel Leal/AFP

A Rússia também é uma fonte importante de metais usados na indústria fabril, como níquel, titânio, paládio e alumínio. O titânio é necessário para fabricantes de aeronaves e de motores para aviões como Boeing, Airbus e Rolls-Royce, enquanto o paládio é usado em conversores catalíticos, eletrodos e eletrônica.

Michael Every, estrategista global do Rabobank, disse que uma combinação de um conflito prolongado com sanções duras poderá produzir "o mesmo tipo de choque que tivemos durante a Covid, quando descobrimos rapidamente que essa estrutura elegante, concentrada, 'just in time' que construímos é defeituosa".

O Financial Times contatou uma série de empresas que dependem de suprimentos da Rússia ou que têm operações no país. Todas disseram que estão monitorando a situação e priorizando a segurança dos empregados. Várias afirmaram estar protegidas da disrupção em curto prazo, em parte por causa de operações localizadas ou de altos níveis de estoque de materiais chaves.

Energia e mineração


A indústria de energia se preparava para a disrupção depois que os futuros do gás europeu saltaram 50%, para 126 euros por megawatt-hora, enquanto o petróleo subiu até 8%, atingindo o nível mais alto desde 2014.

Não há evidência ainda de disrupção no abastecimento, mas com a capacidade excedente limitada para substituir o petróleo ou o gás russos se o fluxo vacilar, devido a sanções ou ao conflito, os preços deverão subir.

A BP e a TotalEnergies são as produtoras de petróleo europeias com maior exposição à Rússia, segundo o banco de investimentos Jefferies. A BP possui quase 20% da Rosneft, uma das maiores produtoras de petróleo russas. No ano passado, a participação gerou lucros de mais de US$ 2,4 bilhões para a BP, dos quais ela coletou dividendos de US$ 640 milhões.

A Rússia é o terceiro maior produtor de petróleo do mundo, bombeando aproximadamente 10 milhões de barris por dia de cru. A Trafigura, umas das maiores corretoras mundiais de commodities, disse que o cru russo já estava sendo negociado com desconto, um sinal de que os compradores tinham começado a evitar os carregamentos russos.

Giacomo Romeo, analista no Jefferies, disse que um cenário potencial é que os oleodutos da Ucrânia sejam danificados ou que a Rússia corte o fluxo de gás pelo país, que representou cerca de 8% do total exportado para a Europa no ano passado. O preço do gás em alta deverá aumentar ainda mais os custos de energia para consumidores industriais em toda a Europa, que depende da Rússia para cerca de 40% de seu suprimento.

Como a Rússia também é uma importante fonte de matérias-primas usadas na manufatura, as companhias do setor estão preparadas para um aumento dos custos e potencial interrupção do suprimento. Excluindo a China, a Rússia responde por 14% da produção de alumínio do mundo.

O alumínio é usado em tudo, de latas de bebida a carros. A Rússia é uma grande produtora de platina e paládio, dois metais preciosos que são usados para remover as emissões tóxicas dos escapamentos de veículos.

A tensão financeira imposta pelo alto preço do gás, que saltou 30% na quinta-feira (24), já obrigou vários grandes produtores de metal a conter a produção e suspender a fundição.

"O risco de uma interrupção no abastecimento do grupo de platina russa é imenso, com o país representando cerca de 12% do suprimento global de platina e 40% do suprimento global de paládio", disse Natasha Kaneva, analista no JPMorgan.

A Ferrexpo, sediada na Ucrânia, é a terceira maior exportadora mundial de pelotas de minério de ferro de alta qualidade. A empresa, listada em Londres, disse que suas instalações de mineração e processamento, localizadas no centro da Ucrânia, estavam operando normalmente, embora o governo tenha suspendido o transporte ferroviário. As ações do grupo caíram 42,5% na quinta, tornando-se a maior queda no FTSE 250.

Semicondutores

A Rússia e a Ucrânia são as principais fontes dos gases químicos C4F6 e neon, que são vitais para a produção de semicondutores. Os fabricantes de chips poderão estar entre os mais afetados se os suprimentos da Ucrânia forem severamente prejudicados durante um período prolongado. A Ucrânia é um dos maiores fornecedores de vários gases nobres usados na fabricação de chips, particularmente o neon, usado em lasers que gravam funções nos chips.

Um punhado de empresas ucranianas processa neon, que é um subproduto da produção de aço na Rússia. Dick Betzendahl, consultor independente especializado em gases raros, disse que a Ucrânia produz um quarto do neon do mundo, cujos preços triplicaram nos últimos seis meses depois que as siderúrgicas chinesas, que geram o gás como subproduto, fecharam para as Olimpíadas de inverno. A oferta insuficiente de xenônio e criptônio, também críticos para a fabricação de semicondutores, aumentaria, acrescentou.

"Definitivamente vai causar problemas para as empresas de semicondutores", disse ele.

Alguns dos maiores fabricantes de chips alegaram que suas cadeias de suprimentos globais foram projetadas para suportar o tipo de interrupção que poderia advir de um conflito armado prolongado.

A Micron, uma das maiores fabricantes de chips de memória, disse que seu neon é "principalmente originário de vários fornecedores" em outros países. Ela também informou que estava trabalhando com fornecedores sob contratos de longo prazo para garantir que não enfrentasse escassez, e que tinha "estoques apropriados" para continuar operando.

A Intel, maior fabricante de chips dos Estados Unidos, também apontou para sua "cadeia de suprimentos global diversificada", acrescentando: "Não esperamos nenhum impacto em nossa cadeia de suprimentos".

No entanto, nenhuma das empresas disse que proporção de seus suprimentos de neon ainda vem da Ucrânia, ou por quanto tempo elas poderiam manter suas operações normais de fabricação se o abastecimento fosse interrompido.

Bancos

Os bancos ocidentais estão se afastando da Rússia desde a invasão da Crimeia por Moscou em 2014. No entanto, as ações dos credores europeus que permaneceram foram duramente atingidas na quinta-feira.

Raiffeisen, o credor austríaco que gera mais de um terço de seus lucros na Rússia, sofreu uma queda de 20% em suas ações, enquanto a UniCredit da Itália e a Société Générale da França caíram mais de 11%.

A subsidiária da SocGen com sede em Moscou, Rosbank, tem 550 agências e 3,1 milhões de clientes, enquanto a UniCredit opera 103 agências e 2 milhões de clientes no país. No mês passado, a UniCredit abandonou um plano que poderia levar à aquisição do Otkritie Bank, um credor controlado pelo Estado russo.

A Rússia respondeu por 6% dos lucros da UniCredit no ano passado e 4% dos lucros da SocGen, segundo o JPMorgan. Raiffeisen, SocGen e UniCredit são o 9º, 10º e 11º maiores bancos da Rússia em ativos.

Os três bancos disseram que estão acompanhando de perto os desenvolvimentos, mas insistiram que seus negócios russos estão suficientemente capitalizados para suportar saques em massa pelos clientes e que continuam operando de "maneira totalmente compatível".

"A Rússia passou por ondas de sanções e sempre ajustamos nossa forma de operar", disse a UniCredit. A SocGen disse que "o Rosbank é um banco russo com atividades principalmente locais, e estamos confiantes em nossa capacidade de garantir a atividade para nossos clientes e de nos adaptarmos quando necessário".

Serviços profissionais


Escritórios de advocacia e consultorias com escritórios na Rússia estavam elaborando planos de contingência na quinta-feira para uma possível retaliação de Moscou às sanções ocidentais.

As consultorias McKinsey & Company e Boston Consulting Group têm cada uma 400 pessoas trabalhando em Moscou, enquanto as maiores firmas de advocacia com sede no Reino Unido têm cerca de 150 advogados na Rússia ao todo.

Líderes de uma grande empresa de consultoria se preparavam para possíveis retaliações da Rússia a empresas ocidentais, incluindo uma possível proibição de trabalhar no país, disse uma pessoa informada sobre o assunto. Outra possibilidade é que funcionários ou escritórios dessas empresas possam se tornar alvos de protestos ou desobediência civil na Rússia, acrescentou a pessoa.

Grandes escritórios de advocacia internacionais com base na Ucrânia, incluindo CMS, Dentons e Baker McKenzie, fecharam temporariamente seus escritórios na Ucrânia na manhã de quinta-feira e têm ajudado a realocar funcionários para as bases da UE. A Baker McKenzie, que afirma em seu site ter sido o primeiro escritório de advocacia global a abrir na Ucrânia, tem cem funcionários na região, seguido pelo CMS, que tem 67 funcionários em Kiev.

A Dentons disse que iria realocar advogados da Ucrânia para outros escritórios, caso solicitada. A empresa de contabilidade e consultoria PwC, que tem três escritórios na Ucrânia, disse que está tentando manter suas operações funcionando "tão normalmente quanto possível", mas aconselhou seus 750 funcionários no país a ficarem em casa na quinta. Outra firma de contabilidade, a KPMG, que tem 4.000 funcionários na Rússia e 600 na Ucrânia, disse que "continua comprometida em manter sua presença local".

"É um caos absoluto sem precedentes nos bastidores retirar as pessoas", disse uma pessoa em outra empresa de consultoria.

Indústria automobilística

A Ucrânia abriga fábricas de peças para automóveis, o que a deixa conectada às cadeias de suprimentos da indústria automobilística russa e europeia.

Os principais fornecedores internacionais, incluindo Bosch e Aptiv, têm fábricas no oeste do país, ao longo da fronteira com a Polônia, que é um importante centro de peças automotivas. A fábrica da Bosch renova componentes para o mercado de reposição e não fornece diretamente a fábricas de automóveis, disse um porta-voz na quinta-feira.

Muitas das outras fábricas são especializadas em cabos elétricos, que dependem de mão de obra barata e são de propriedade de empresas que têm operações semelhantes no norte da África, de acordo com Ian Henry, especialista em produção automotiva da AutoAnalysis.

"É difícil dizer atualmente em quanto tempo a Ucrânia se tornará o problema de fabricação definidor, em vez de apenas mais uma dor de cabeça", disse Henry.

O fornecimento de paládio, que é usado em conversores catalíticos e semicondutores, bem como de níquel para baterias, é uma preocupação. E o aumento do preço do níquel, que também é proveniente da Indonésia e das Filipinas, já levou as montadoras a buscar materiais alternativos para suas baterias de carros elétricos, segundo Dominic Tribe, especialista em cadeias de suprimentos da consultoria Vendigital.

Várias montadoras também têm fábricas na própria Rússia, incluindo Renault, Stellantis, Toyota, Kia e Nissan. A Renault, que possui a maior montadora do país, Avtovaz, tem a maior exposição. Sua subsidiária russa tem duas fábricas, e a Renault tem sua própria fábrica em Moscou. A montadora francesa responde por pouco menos de um terço dos veículos vendidos no país.

O executivo-chefe Luca de Meo disse ao Financial Times na semana passada que a empresa estava elaborando planos de contingência para manter as peças fluindo para os locais em caso de sanções ou interrupções. Entre 10% e 20% das peças que vão para as fábricas da Avtovaz são importadas, enquanto para as instalações da Renault em Moscou o número fica entre 30% e 40%.

Alguns dos fornecedores russos da Renault incluem a francesa Valeo, que tem uma fábrica a leste de Moscou que produz alguns sistemas de transmissão e outras peças. A Valeo disse na quinta-feira que estava monitorando a situação.

A Stellantis é a única empresa automobilística com sede na Rússia que exporta um volume significativo de veículos para a Europa. A proprietária da Jeep e da Fiat planejava começar a produção de vans para exportação em Kaluga, cerca de 200 quilômetros ao sul de Moscou, para atender à crescente demanda.

No início desta semana, o CEO Carlos Tavares disse que o grupo poderá levar a produção de volta para a Europa se enfrentar proibições de exportação ou não conseguir obter peças para as fábricas.

"Se não conseguirmos suprir as plantas, teremos que transferir essa produção para outras plantas ou apenas nos limitar e aumentar o preço", disse.

Produtores de alimentos

A Ucrânia é um dos principais produtores mundiais de grãos e óleo de girassol, e comerciantes de grãos, empresas de alimentos e algumas cervejarias ocidentais têm operações no país. Quando as tropas russas entraram, várias delas foram suspensas.

A Mondelez, fabricante do chocolate Cadbury e dos biscoitos Oreo, disse que está suspendendo as operações em suas duas fábricas ucranianas em Trostyanes e Vyshhorod, que fazem uma variedade de produtos, incluindo marcas locais, como biscoitos Jubilee e chocolate Korona.

A Carlsberg, terceira maior cervejaria do mundo e fabricante da Kronenbourg 1664, disse que o trabalho em suas três cervejarias na Ucrânia foi interrompido. "Suspendemos o trabalho em nossas cervejarias em Zaporizhzhya e Kiev e pedimos aos nossos funcionários que permaneçam em casa e sigam as instruções das autoridades. Nossa terceira cervejaria, em Lviv, está temporariamente fechada devido à interrupção no fornecimento de gás natural", disse o grupo dinamarquês.

A Cargill, grupo de comércio agrícola dos EUA que detém a maior parte de um terminal de grãos perto de Odessa, no Mar Negro, disse que estava "trabalhando para determinar se há interrupções ou impactos em nossas operações na região. Implementamos planos de contingência porque ainda há muita incerteza".

A empresa americana teve que abandonar sua planta de moagem de girassol em Donetsk em 2014, depois que indivíduos armados a dominaram.

A Nestlé, maior empresa de alimentos do mundo, enviou para casa seus quase 5.800 funcionários na Ucrânia, seguindo outros grupos internacionais de alimentos e bebidas, que suspenderam as operações no país após a invasão russa.

O grupo suíço disse que havia "fechado temporariamente" suas três fábricas e o centro de serviços na Ucrânia, recomendando que os funcionários fiquem em casa e sigam as orientações das autoridades. Ele disse que a partir da tarde de quinta-feira "todos os nossos colegas estão seguros e permanecemos em contato constante com eles".

Com Emiko Terazono, Sarah White, Peter Campbell, Michael O'Dwyer, Kate Beioley, Neil Hume, Tom Wilson, Harry Dempsey, Judith Evans, Richard Waters e Sylvia Pfeifer

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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