Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Guerra na Ucrânia: por que o Brasil depende tanto dos fertilizantes da Rússia?

País importa 85% dos fertilizantes que utiliza, e Rússia responde por 23% das importações

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São Paulo | BBC News Brasil

"Para nós, a questão do fertilizante é sagrada." Assim o presidente Jair Bolsonaro (PL) justificou no domingo (27) a opção do Brasil por uma posição "de equilíbrio" na guerra entre Rússia e Ucrânia.

Enquanto isso, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem repetido que ainda não há motivo para pânico com relação à oferta de fertilizantes e que o país tem alternativas no mercado para recorrer e estoques para chegar à próxima safra —que começa a ser plantada em outubro.

Mas qual é de fato o grau de dependência do Brasil dos fertilizantes russos? E isso foi sempre assim ou é um fenômeno recente?

Existem mesmo outras fontes de importação, caso o comércio com a Rússia venha a ser interrompido devido às sanções impostas ao país euroasiático? E a produção nacional, pode ser ampliada para suprir as necessidades do setor rural?

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Potássio é o fertilizante que mais preocupa e 'certamente vai haver desabastecimento mundial' desse nutriente, dizem analistas - Getty Images

Em linhas gerais, o Brasil importa 85% dos fertilizantes que utiliza, e a Rússia responde por 23% dessas importações. A eventual falta de potássio é a que mais preocupa o setor e "certamente vai haver desabastecimento mundial" desse nutriente, dizem analistas.

Entenda em detalhes abaixo como a invasão da Ucrânia pela Rússia pode afetar o agronegócio brasileiro, num momento em que a população já sofre com o alto preço dos alimentos.

O consumo de fertilizantes no Brasil

O Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo (atrás de China, Índia e Estados Unidos) e o maior importador mundial desses insumos.

Em 2021, dos mais de 40 milhões de toneladas de fertilizantes consumidos no país, 85% foram importados. A parcela das importações na demanda interna de adubos e fertilizantes tem crescido ano a ano: em 2017, os importados representavam 76% do total, segundo dados da Anda (Associação Nacional para Difusão de Adubos).

"O solo brasileiro precisa muito de fertilizantes porque ele é naturalmente pobre em nutrientes", explica José Carlos Polidoro, pesquisador da Embrapa Solos.

"É diferente do hemisfério Norte —dos EUA, da Europa— que são regiões de solos férteis. Nossos solos são de baixa fertilidade, principalmente no Cerrado, onde estão nossos melhores solos para agricultura. Têm muita água, são solos profundos, planos, mas têm essa limitação natural de nutrientes, que é algo próprio da natureza tropical", diz Polidoro.

A soja é a principal cultura consumidora de fertilizantes no país. Somada com o milho, a cana-de-açúcar e o algodão, essas quatro culturas absorvem mais de 90% do fertilizante produzido ou importado pelo Brasil, destaca o pesquisador da Embrapa.

Brasil realmente depende dos fertilizantes russos?

Somente em 2020, a demanda brasileira por fertilizantes cresceu 12% em relação ao ano anterior e, em 2021, aumentou novamente em 14%, acompanhando uma tendência mundial de avanço do consumo de fertilizantes, além de sucessivas safras recordes de grãos no país.

Esse aumento de demanda se refletiu nas importações de fertilizantes vindos da Rússia, que praticamente dobraram no último ano, passando de US$ 1,8 bilhão em 2020, para US$ 3,5 bilhões (R$ 18 bilhões) em 2021.

A Rússia responde sozinha por 23% das importações brasileiras de fertilizantes, que somaram US$ 15,2 bilhões (R$ 78,4 bilhões) no ano passado.

Para se ter uma ideia, o valor importado em fertilizantes da Rússia é quase 70% maior do que o segundo colocado nas importações, a China, de onde importamos US$ 2,1 bilhões em fertilizantes em 2021.

E tem ainda Belarus, sétimo maior exportador de fertilizantes ao Brasil, respondendo por 3% das nossas importações desses insumos e aliado da Rússia na invasão à Ucrânia.

Assim, os dois países aliados respondem juntos por 26% da importação brasileira de fertilizantes, um grau de dependência relevante e que explica o olhar atento do país ao conflito no Leste Europeu.

"A Rússia atualmente é o maior exportador de NPK mundial", observa Marcelo Mello, diretor de fertilizantes da consultoria StoneX.

NPK é a sigla para nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K), os três macronutrientes mais importantes para a nutrição das plantas.

O nitrogênio é obtido a partir do gás natural, combustível do qual a Rússia é o segundo maior produtor do mundo e o maior exportador. O fósforo e o potássio, por outro lado, são produtos minerais, dos quais o país de Vladimir Putin tem minas abundantes.

"A Rússia sempre foi um importante fornecedor de fertilizantes para o Brasil e o volume importado cresceu nos últimos anos porque estávamos com uma demanda imensa e eles tinham a capacidade de nos vender", explica Mello.

Existem outras fontes de importação, caso o comércio com a Rússia seja interrompido?

Na terça-feira (1º), o embaixador de Belarus no Brasil, Sergey Lukashevich, disse que seu país foi obrigado a suspender as vendas de fertilizantes para o Brasil porque o escoamento foi proibido pela Lituânia, que fechou fronteiras.

Com relação às exportações russas, mesmo diante dos esforços de Bolsonaro para manter as boas relações com Putin, garantindo a continuidade dos fluxos comerciais entre os países, há dúvidas se a Rússia conseguirá manter as entregas de seus produtos.

Isso porque, com o endurecimento das sanções financeiras contra o país, cujos bancos foram bloqueados do sistema de transferências internacionais Swift, ainda não está claro se os compradores internacionais conseguirão fazer os pagamentos pelas importações.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem repetido que o Brasil tem opções para importar fertilizantes, citando como exemplos Irã, Canadá e Marrocos. Mas especialistas do setor avaliam que a situação não é tão simples e que a gravidade do cenário varia de insumo a insumo.

Segundo Marcelo Mello, da StoneX, o quadro mais preocupante é o do potássio, que tem Canadá, Belarus e Rússia como maiores produtores, com fatias de 40% e 20% do mercado cada, respectivamente. Ou seja, os três países somam quase 80% da oferta mundial.

Belarus já vinha sofrendo sanções desde o segundo semestre do ano passado, com EUA, União Europeia e Reino Unido respondendo a ataques do presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, aos direitos humanos de imigrantes.

Assim, o mercado, que já vinha apertado pelas restrições a Belarus, está agora em alerta máximo.

"Tudo leva a crer que as sanções são fortíssimas e tendem a inviabilizar a exportação russa. Um cenário onde Belarus já estava praticamente fora e agora o mercado perde os 20% da Rússia é impraticável", avalia Mello.

"Não é mais uma questão de 'talvez vamos ter uma crise de abastecimento'. Nós certamente vamos ter uma crise. Certamente haverá desabastecimento, não só no Brasil, mas mundial", afirma o consultor.

Outros países produtores de potássio, como Israel, Chile, Jordânia e Alemanha, produzem volumes pequenos e que já têm compradores, assim resta como alternativa o Canadá.

"Mas somos nós indo para o Canadá e toda a torcida do Corinthians", brinca Mello. "Então, é muito pouco provável que o Canadá consiga repor a falta que Rússia e Belarus farão no mercado."

Em relação ao fósforo, a Rússia é o terceiro maior exportador, atrás de China e Marrocos. Aqui, segundo o consultor, se 100% das exportações russas forem bloqueadas, não deve faltar fósforo no mundo, mas a situação deve ficar muito similar à do potássio antes da guerra. Ou seja, com um mercado muito apertado e preços elevados.

Por fim, no caso do nitrogênio, matéria-prima para a produção de ureia, muito usada no Brasil como fertilizante e na produção de fórmulas, a Rússia só fica atrás nas exportações se o Oriente Médio é considerado em conjunto, já que países como Arábia Saudita, Catar e Irã —grandes produtores de petróleo e gás natural— são importantes exportadores.

Aqui, explica o consultor, mesmo que as exportações russas sejam totalmente bloqueadas, não deve faltar produto, pois a China está atualmente fora do mercado internacional (o que acontece sazonalmente entre dezembro e março, durante o inverno chinês), mas deve voltar a produzir em maio.

"A China tem uma capacidade de produção [de nitrogenados] imensa, mas ela tem o maior custo de produção do mundo, pois ela produz a partir do carvão, também usado como fonte de energia localmente e por isso muito caro", explica Mello. "Com os preços dos fertilizantes altíssimos e a saída da Rússia fazendo os preços subir ainda mais, a China não terá problema de custos, então é só ela virar a chave e exportar. Assim, não vai faltar nitrogênio no mundo, mas o preço vai estar alto."

Ainda no nitrogênio, outras alternativas são países do Norte da África, Nigéria, países do Oriente Médio, EUA e Venezuela.

Em resumo: potássio deve faltar, o que pode afetar a produtividade da agricultura brasileira na próxima safra; fósforo e nitrogênio não devem chegar a sofrer desabastecimento, mas preços tendem a seguir elevados, resultando em aumento de custos ao produtor e mais alta de preços nos alimentos.

E a produção nacional, pode ajudar?

Enquanto a demanda brasileira por fertilizantes crescia ano a ano, a capacidade de produção nacional foi na direção contrária.

Em 2017 e 2018, o país era capaz de produzir 8,2 milhões de toneladas de fertilizantes, volume que caiu a 7,2 milhões de toneladas em 2019 e a 6,5 milhões de toneladas em 2020.

"O Brasil, nos últimos 40 anos, ficou sem uma política estratégica para o setor de fertilizantes e de insumos agrícolas em geral. A consequência disso é que o Brasil se desindustrializou. A cadeia de fertilizantes encolheu 33% nos últimos 20 anos, enquanto a demanda explodiu 400% nesse período", afirma José Carlos Polidoro, da Embrapa Solos. "Isso fez com que a nossa dependência de importações saísse de 20% há 20 anos para os atuais mais de 80%. Para o Brasil, que depende do agro, isso é um risco muito grande, chega a ser uma questão de segurança nacional e alimentar."

Parte relevante da queda recente de produção se deve à decisão da Petrobras de sair do setor de fertilizantes, após os problemas financeiros enfrentados pela empresa antes e depois da Operação Lava Jato.

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Fábrica de fertilizantes da Petrobras em Sergipe, arrendada ao grupo Unigel - Agência Petrobras

Das quatro fábricas de nitrogenados da Petrobras, duas —em Laranjeiras (SE) e Camaçari (BA)— foram arrendadas pelo grupo Unigel. As unidades retomaram a produção no ano passado, mas ficaram quase um ano paradas, contribuindo para a queda da produção nacional.

Em 2020, a Petrobras decidiu encerrar a produção de uma terceira fábrica de fertilizantes em Araucária (PR), mas era uma unidade que produzia pequenos volumes e de processo produtivo considerado problemático e ultrapassado.

A quarta unidade, de Três Lagoas (MS), foi vendida em fevereiro deste ano para o grupo russo Acron. A planta ainda está em construção, paralisada desde a época da Lava Jato, e agora há dúvidas se os compradores russos conseguirão concluir a obra, diante das sanções econômicas à Rússia, com bloqueio do sistema financeiro do país.

Em fósforo, a Vale vendeu suas minas de fosfato e fábricas de fósforo e ácido sulfúrico à empresa norte-americana Mosaic. Também atuam no setor as empresas privadas Yara e a Fertilizantes Tocantins, controlada atualmente pelo grupo russo com sede na Suíça EuroChem —outra fonte de preocupação por possíveis problemas de fluxo de caixa, devido às sanções.

Em potássio, o país possui uma pequena mina em atividade em Minas Gerais, operada pela brasileira Verde AgriTech.

Uma outra grande jazida foi identificada no Amazonas, mas era considerada inviável por agentes do mercado até recentemente, devido à dificuldade de viabilizar o financiamento para um investimento bilionário no meio da floresta amazônica e próximo a terras indígenas.

Agora, com a disparada dos preços globais de fertilizantes, ambientalistas e indígenas temem que o governo Bolsonaro aumente a pressão para viabilizar o projeto no coração da floresta.

Na quarta-feira (2), Bolsonaro já deu declarações nesse sentido. "Nosso Projeto de Lei n° 191 de 2020 'permite a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em terras indígenas'", disse o presidente.

"Com a guerra Rússia/Ucrânia, hoje corremos o risco da falta do potássio ou aumento do seu preço. Nossa segurança alimentar e agronegócio exigem de nós, Executivo e Legislativo, medidas que nos permitam a não dependência externa de algo que temos em abundância."

Plano Nacional de Fertilizantes

Neste mês de março, é esperado ainda o lançamento pelo governo de um Plano Nacional de Fertilizantes, que tem por objetivo reduzir a participação dos importados dos atuais 85% para 60% em 30 anos.

Ciro Marino, presidente-executivo da Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química), destaca, porém, que não há solução de curto prazo para a reindustrialização do setor.

"A indústria química é uma indústria de longos ciclos. Não adianta pensarmos em nada para menos de oito ou dez anos. Ou seja, a crise que hoje temos de abastecimento de Rússia e Ucrânia não vai se resolver em um, dois anos", diz Marino.

"Temos que ver o que aprendemos agora, olhando para frente. E para isso é preciso uma forte estratégia de Estado. A gente no Brasil fica muito sujeito a questões conjunturais, do governo de plantão", avalia. "Nós, do ciclo longo, atravessamos dois, três governos até começar a vender o produto. Se não soubermos que Brasil vamos ter em oito ou dez anos, ninguém investe. Temos hoje uma crise de investimento."

Segundo o representante da Abiquim, mudar isso vai depender de uma política industrial, da redução do custos de insumos como gás natural e energia elétrica e de uma reforma tributária que reduza os custos de produção. Com esse tripé e segurança jurídica, Marino avalia que o país tem todo o potencial para atrair investimentos privados ao setor.

E as exportações brasileiras à Rússia?

Mas e na outra ponta? Nas exportações, existe algum item que torne o Brasil dependente de suas relações com a Rússia?

A avaliação dos especialistas é que não. Com a Rússia representando apenas 0,6% do mercado externo brasileiro, essas exportações podem ser facilmente destinadas a outros países, avalia José Augusto de Castro, presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil).

"Em 2021, o Brasil exportou US$ 280 bilhões, então o US$ 1,59 bilhão exportado à Rússia é um valor relativamente pequeno. É praticamente nada", considera Castro.

Entre os principais itens da pauta de exportação brasileira à Rússia estão soja, carne de frango, café, amendoim, açúcar e carne bovina.

"São produtos que, se você não consegue exportar para a Rússia, você exporta para outros mercados. Então, a exportação não é o problema. Nosso problema é realmente a importação de fertilizantes", conclui o especialista.

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