Ligações pessoais entre empresas alemãs e russas viram problema

As consequências econômicas da guerra da Ucrânia são apenas parte do problema para as companhias europeias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Melissa Eddy
Berlim | The New York Times

Quanto Peter Fenkl ouviu que a Rússia tinha invadido a Ucrânia, disse que a primeira coisa em que pensou não foi nos negócios que sua empresa alemã poderia perder nos dois países, mas nos empregados que ele tem na região e que se tornaram mais do que colegas ao longo de anos de transações e drinques compartilhados.

"Eram mais do que relacionamentos de negócios, e se tornaram verdadeiras amizades", disse Fenkl, presidente-executivo de uma empresa que fabrica ventiladores industriais. "Nós participávamos juntos de reuniões, saíamos para tomar cerveja."

A empresa familiar que ele dirige, a Ziehl-Abegg, tem 4.300 empregados, e Fenkl recorda como equipes da Alemanha, Rússia e Ucrânia trabalhavam lado a lado, em viagens de negócios e visitas a feiras comerciais nas quais a Ziehl-Abegg exibia seus produtos.

Agora, os quatro empregados da empresa na Ucrânia foram convocados para defender seu país. Na Rússia, onde a empresa tem uma unidade de produção e emprega 30 pessoas, os negócios pararam completamente.

Ilustração de bandeiras alemãs e russas através de vidro quebrado - Dado Ruvic/Reuters

Fenkl disse que já falou diversas vezes com o gerente da empresa na Rússia, nos últimos sete dias, tentando descobrir como proceder, à medida que a gravidade da situação ia se tornando mais clara.

"Liguei duas vezes para meu colega na Rússia e ele não conseguiu falar", disse Fenkl. "Caiu no choro".

Empresas da Alemanha fazem muito mais negócios na Rússia do que qualquer outro país da União Europeia, exportando bens que ultrapassaram 26 bilhões de euros (R$ 143,8 bilhões) no ano passado (a Polônia ocupa o segundo lugar da lista, com oito bilhões de euros) e investiram 25 bilhões de euros em operações lá. Esse envolvimento na economia russa reflete, em parte, o espírito adotado pela antiga Alemanha Ocidental quando a Segunda Guerra Mundial terminou –o de que o comércio garantiria a paz e impediria a Europa de decair a uma nova guerra.

A anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e as sanções que seguiram causaram uma queda de um terço no número de empresas alemãs que investem na Rússia. Mas ainda assim, o total atingiu quase 4.000 empresas em 2020, e muitas delas estavam convencidas de que sua presença lá ajudaria a ancorar a Rússia na esfera democrática.

Em 24 de fevereiro, essa convicção foi destruída, o que levou empresas de todos os tamanhos a começar a tentar definir o que fazer a seguir.

Ainda que algumas tenham anunciado a decisão de sair da Rússia e tenham começado a desfazer suas conexões de negócios com o país, outras estão tentando continuar, algumas por lealdade a seus empregados, a despeito das sanções ocidentais que ergueram imensos obstáculos às transações bancárias e ao transporte internacionais, e do colapso do rublo. O que resta para muitas empresas é uma sensação profunda de tristeza, acoplada a alguma desilusão.

As principais montadoras de automóveis da Alemanha –BMW, Volkswagen, Mercedes-Benz e Daimler Truck– anunciaram todas que suspenderiam suas exportações e produção na Rússia. Empresas sob controle familiar como o ZF Grupo, fabricante de autopeças, e a Haniel, que administra diversas empresas independentes no país, estão fazendo o mesmo.

"Embora nossas opções sejam limitadas, ainda podemos ter impacto", disse Thomas Schmidt, presidente-executivo da Haniel, em uma declaração por vídeo, anunciando que todas as atividades de negócios na Rússia e Belarus seriam suspensas e que todos os compromissos da empresa com aqueles países seriam cancelados. "Compreendo que é difícil do ponto de vista do relacionamento entre cliente e fornecedor, mas o mais importante é colocarmos pessoas nas ruas, protestando".

Esse sentimento está presente até mesmo na Associação de Negócios Alemanha-Leste um grupo de empresas que há décadas defende o aprofundamento dos elos econômicos com Moscou, mesmo diante das ações cada vez mais antidemocráticas do presidente russo Vladimir Putin. A organização está celebrando seu 70º aniversário este ano e diversos de seus integrantes tinham uma reunião marcada com Putin na semana passada, em Moscou. A viagem foi cancelada depois da invasão.

"Nós devemos definir as coisas pelo que elas são de fato. Hoje o assunto é menos as sanções e suas consequências e mais se ainda teremos um relacionamento econômico significativo com a Rússia no futuro", disse Oliver Hermes, que preside a organização. Em 2014, ela fez campanha contra punições econômicas severas contra Moscou, mas desta vez sua posição é diferente.

"Quanto mais cedo o governo russo parar essa guerra, mais poderemos salvar desse relacionamento", disse Hermes. "Não há questão de que a economia alemã apoiará as sanções impostas".

O grupo de petróleo e gás natural alemão Wintershall Dea, que tem projetos no mundo todo, cancelou a entrevista coletiva anual da companhia que teria acontecido em 25 de fevereiro, um dia depois da invasão. Em lugar disso, seus líderes divulgaram um comunicado conjunto na quarta-feira (2) expressando alarme diante da guerra.

"Nós trabalhamos na Rússia há mais de 30 anos. Muitos de nossos colegas em outros locais também trabalham com parceiros russos em base cotidiana", o comunicado afirmava. "Construímos muitos relacionamentos pessoais –o que inclui nossas joint ventures com a Gazprom", a gigante estatal da energia russa.

"Mas a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia representa um ponto de inflexão", eles afirmaram. "O que está acontecendo agora abala as fundações de nossa cooperação".

A empresa anunciou, além disso, que suspenderia seus pagamentos à Rússia e classificaria como prejuízo seu investimento de 1 bilhão de euros no malfadado gasoduto Nord Stream 2, que conectaria a Rússia à Alemanha e cuja construção o governo alemão suspendeu em 22 de fevereiro. A empresa tampouco receberá receita de suas operações de petróleo e gás natural na Rússia, que responderam por quase um quinto de seu lucro em 2021.

Nem todas as empresas alemãs estão saindo. A Metro, uma atacadista de alimentos que opera 93 lojas na Rússia, onde teve 2,4 bilhões de euros (R$ 13,2 bilhões) em receita no ano passado, anunciou que havia decidido manter as operações, por preocupação quanto à possibilidade de que suspendê-las prejudicasse o abastecimento de alimentos para a população. "Nenhum de nossos 10 mil empregados na Rússia é pessoalmente responsável pela guerra na Ucrânia", a empresa anunciou em comunicado.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.