Descrição de chapéu Mercado imobiliário

Quarto de serviço resiste nos imóveis de luxo, mas tem dias contados

Mudanças trabalhistas, culturais e de aproveitamento do espaço fazem com que cômodo seja área coringa em unidades de alto padrão

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São Paulo

Apartamentos com cômodos específicos para empregados domésticos ainda são lançados no país. Porém, se na década de 1960 o espaço era encontrado até em apartamentos de dois quartos, hoje o ambiente, chamado de quarto de empregada, de serviço ou dependência de empregado, só aparece em unidades grandes, uma minoria do mercado —em 2021, apenas 1% dos apartamentos lançados em São Paulo tinham mais de 180 metros quadrados, de acordo com dados do Secovi-SP (Sindicato da Habitação).

Nos imóveis menores, a valorização do preço por metro quadrado e a demanda por mais espaço para os dormitórios e a porção social da casa, como sala e varanda, tem a prioridade no uso da área que poderia ser utilizada pelo quarto de serviço, analisa Bianca Setin, diretora de operações da incorporadora que leva seu sobrenome.

Maria Augusta Justi, professora do curso de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que o quarto de serviço é uma continuação da dinâmica entre casa grande e senzala, que se arraigou na cultura dos brasileiros quando as cidades foram verticalizadas.

"Esse espaço já vem há muitos séculos na história da arquitetura brasileira, e nasceu com a finalidade de segregar trabalhadores", afirma.

Também é um cômodo que está fadado a desaparecer ou ter outras utilidades, diz Justi. Isso porque, em 2018, menos de 1% dos empregados domésticos brasileiros —cerca de 46 mil trabalhadores— dormiam em seu local de trabalho, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com dados da Pnad Contínua. Em 1995, no início da série histórica, eram 12%, chegando a 23% no Nordeste.

O cômodo é, via de regra, apertado, com espaço para uma cama de solteiro e um armário. Segundo o Código de Obras e Edificações de São Paulo, um cômodo habitacional dedicado ao repouso precisa ter uma área mínima de 5 metros quadrados, mas uma norma da ABNT sobre desempenho das edificações utiliza outros parâmetros, como conforto térmico, de luminosidade e ventilação, o que permite um volume diferente, segundo a professora. "Ele pode ter um dos lados com 2 metros e outro um pouco menor", diz Justi.

Na Setin, por exemplo, os quartos costumam ter cerca de 3 metros quadrados. Em pesquisa no site de sete incorporadoras, foram encontrados quartos com área de 3 a 5,86 metros quadrados —maior do que o menor dormitório encontrado na área social dos imóveis buscados, de 6,55 metros quadrados.

Anúncio em preto e branco com planta de imóvel
Anúncio de dezembro de 1995 para empreendimento imobiliário com quarto de serviço - AcervoFolha/Reprodução

Essa área, nos imóveis antigos e de alto padrão, tem sua própria porta de entrada e elevador de serviço, barreiras físicas de separação nos condomínios. Justi ressalta, no entanto, que desde 1996 uma lei municipal proíbe a discriminação nos elevadores.

Hoje, a redução do tamanho das famílias diminui a quantidade de serviço doméstico que precisa ser realizado, e a tecnologia permite contratar funcionários de acordo com a demanda, como no caso das diaristas, chefs de cozinha, passadeiras e do serviço de transporte por aplicativo, o que contribui para a queda na contratação de domésticas que durmam nas residências.

Levantamentos da consultoria IDados e do pesquisador Daniel Duque, do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas) apontam que, em dezembro do ano passado, 91,6% desses trabalhadores eram mulheres, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua.

Além disso, a renda média era de R$ 953 mensais —para os homens, essa média era maior, de R$ 1.210— e abaixo da renda média mensal de todos os trabalhadores brasileiros (R$ 2.377). Os números também mostram que a idade média de quem presta serviços para as famílias era de 43,1 anos e que 65,8% deles se declararam como pretos ou pardos.

O trabalho doméstico em números

Perfil do trabalhador Total Mulheres Homens
Renda média R$ 953 R$ 930 R$ 1.210
Idade média 43,1 43,1 43,6
População ocupada (em milhões) 5,7 5,2 0,5

Fonte: PnadC, com IDados e Daniel Duque (Ibre/FGV)

Duque concorda que as mudanças culturais, a redução da desigualdade salarial e as reformas trabalhistas (inclusive as mudanças específicas para domésticas) tornaram proibitivo para a grande maioria das famílias manter um trabalhador doméstico fixo, principalmente aquele que dorme em casa.

Ele pondera, no entanto, que não é necessariamente bom ou ruim para o trabalhador poder prestar serviços para mais de uma família durante a semana. Vai depender do quanto ele consegue se adaptar a esse modelo mais flexível.

"Por um lado, aumenta a volatilidade de rendimentos desses trabalhadores, mas também muda as relações de trabalho para algo mais próximo de cliente e prestador de serviço, como ocorre em países mais desenvolvidos, e permite rendimentos médios maiores", diz.

Segundo a advogada do Sindoméstica (Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo), Nathalie Rosário, é ruim para o trabalhador quando o empregado fixo se torna diarista, já que a fiscalização se torna mais difícil e um maior número deles fica desprotegido e sem direitos previdenciários.

Para Tatiana Roque, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, a PEC das Domésticas trouxe reações sociais negativas pela maior dificuldade que algumas famílias de classe média tiveram de manter o trabalhador em casa.

"A maior dificuldade para contratação, neste caso, foi positiva. O desamparo que a pandemia trouxe para esses trabalhadores, no entanto, é algo preocupante e que precisa ser observado. O ideal é que os demitidos voltem para o mercado mais treinados e com opções de carreira."

Ela acrescenta que o menor número de domésticas que dormem no trabalho e o reflexo disso no mercado imobiliário é algo positivo. "Ou essas pessoas eram exploradas ao longo do tempo ou viviam muito longe de seus empregos. É por isso que defendemos uma renda básica para que ninguém tenha de se sujeitar a condições de trabalho ruins."

O destino do quarto de empregada

"Os apartamentos maiores têm tendência a serem espaços totalmente personalizáveis onde, na maioria dos casos, os clientes utilizam [o quarto de serviço] para outros usos", diz Guilherme Benevides, diretor-executivo da incorporadora Gafisa.

Historicamente, a dependência de serviço foi um espaço que poderia ser convertido em outro cômodo. Em prédios de décadas passadas é possível encontrar quartos com duas portas, uma para a área de serviço e outra para a área social do imóvel, de forma que os moradores pudessem escolher qual uso fariam do espaço.

"[Em imóveis] a partir de 200, 250 metros quadrados, você encontra [o quarto de serviço], mas não significa que ele vai ser usado, normalmente o quarto vira depósito, prataria, home office", afirma Marcello Romero, diretor-executivo da imobiliária Bossa Nova Sotheby’s, especializada em alto padrão.

Durante a pandemia, conta Justi, o cômodo foi uma opção para quem precisava de um espaço mais recluso para estudar ou trabalhar.

Com reformas, ele pode ser anexado à sala, aumentando o espaço da área social, ou à cozinha. Também é possível criar ali um novo banheiro para o imóvel.

As incorporadoras já se antecipam a essa vontade de modificar a área e oferecem plantas com usos diferentes para esse espaço. A Setin, por exemplo, anunciou o residencial H.I. Pinheiros, lançado no ano passado, com unidades de 178 metros quadrados com opções que incluíam quarto de empregada, despensa ou cozinha ampliada.

Segundo Bianca Setin, a proporção entre os compradores que escolhem manter o cômodo como quarto de serviço, usá-lo como despensa ou aproveitar o espaço para aumentar a cozinha é semelhante.

O mercado imobiliário se adapta à nova realidade de legislação trabalhista e de cultura das famílias, e a academia também mudou a forma de pensar no cômodo para funcionários domésticos, o que deverá impactar projetos futuros.

"Quando estudei, era muito comum ter que dividir o espaço [do imóvel] entre serviço, social e íntimo, mas hoje esses espaços interagem", diz. "Não usamos mais essas separações classistas dentro do projeto de residência."

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