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Moeda digital expõe debate sobre risco à privacidade

Proteção de dados, sigilo e rastreabilidade estão no centro do debate

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Brasília

Desde 2020, o Banco Central estuda como viabilizar a implementação de uma moeda digital brasileira. Mas questões relativas à privacidade ainda precisam ser aprimoradas ao longo do desenvolvimento do real digital. Proteção de dados, sigilo e rastreabilidade estão no centro do debate tanto do projeto nacional quanto de iniciativas ao redor do mundo.

Ao projetar o sistema de uma CBDC (Central Bank Digital Currency), há uma ampla gama de opções de técnicas criptográficas e arranjos operacionais referentes à proteção de informações e de seus participantes.

A vigilância do governo sobre o comportamento dos usuários está entre as discussões que vêm à tona com a criação de moedas digitais emitidas por bancos centrais. Diferentemente das criptomoedas, como bitcoin, elas seriam uma extensão do papel-moeda, asseguradas pelo Estado.

Fotografia mostra quatro moedas douradas enfileiradas; elas tem grafado um "B" de bitcoin
Uma representação de uma criptomoeda - Edgar Su/Reuters

Isac Costa, ex-analista de Mercado de Capitais na CVM (Comissão de Valores Mobiliários), destaca o "paradoxo da transparência" total nas operações envolvendo moedas digitais.

Segundo ele, a visibilidade plena sobre as transações pode ser usada dentro de um Estado Democrático de Direito para "fins legítimos", como prevenção à lavagem de dinheiro e à sonegação fiscal. No entanto, aponta que 100% de transparência pode ser um problema durante a gestão de um governo autoritário, seja de direita ou de esquerda.

"Se eu tenho a ascensão de um Estado autoritário, ele pode tentar identificar quais são as fontes de financiamento e as receitas de determinados inimigos, pode utilizar o pretexto do combate ao terrorismo para tentar sufocar movimentos revolucionários", afirmou.

Para o especialista em Regulação, Finanças e Tecnologia, ao abrir a oportunidade de o Estado ter uma fiscalização plena sobre os cidadãos, surge também a possibilidade de abusos de poder. "Controlar abuso de poder do Estado é sempre um problema", afirmou.

Para ilustrar, o consultor e professor fez uma analogia com a "guerra ao terror", conduzida pelos Estados Unidos após os ataques de 11 de setembro de 2001, e também usou a Rússia e a China como exemplos.

A operação do yuan digital é vista com desconfiança por especialistas ocidentais, dada a ingerência do Partido Comunista da China sobre a vida dos cidadãos do país.

A China também foi citada por Bruno Diniz, professor de inovação dos cursos de MBA da USP/Esalq e sócio-fundador da consultoria Spiralem, diante da possibilidade de o governo chinês usar a moeda digital como forma de reforçar o Estado de vigilância, impedindo que seus cidadãos adquiram bens e serviços conflitantes com as diretrizes do partido.

"Uma ferramenta na mão de governos autoritários pode levar a efeitos colaterais negativos, com maior controle das restrições que já existem, como da própria internet, levando isso para um nível financeiro extremo", disse.

Se a completa transparência pode ser um problema, no outro extremo, um alto grau de opacidade seja nas transações digitais ou nos agentes envolvidos também não é desejável, pois abre espaço para golpes e fraudes. Mas a privacidade de uma CBDC vai além das opções binárias de visibilidade ou anonimato.

Fachada do prédio do Banco Central, em Brasília - Antonio Molina - 11.jan.22/Folhapress

No Brasil, as diretrizes do BC sobre o real digital, divulgadas em maio de 2021, estabelecem que sejam garantidos todos os princípios e regras de privacidade e segurança determinados pela legislação às operações nos sistemas financeiros e de pagamentos – como a lei do sigilo bancário e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

Destaca-se ainda a previsão de um desenho tecnológico que permita atendimento integral às recomendações internacionais e normas legais sobre prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa, inclusive em cumprimento a ordens judiciais para rastrear operações ilícitas.

Rodrigoh Henriques, líder de inovações financeiras da Fenasbac (Federação Nacional de Associações dos Servidores do Banco Central), defende a "anonimidade controlada" e diz que uma moeda criada para o mundo digital "pode e deve ser passível de análise por reguladores e pelo governo ao mesmo tempo que preserva por padrão o sigilo das transações".

"As transações são confidenciais para todos aqueles fora do sistema financeiro, mas em caso de necessidade o Banco Central, por determinação da correta instância jurídica, poderia revelar os dados para análise e uso em processos e investigações", afirmou.

Segundo Fabio Araújo, coordenador da iniciativa do real digital do BC, uma possível estratégia no caso brasileiro será "buscar reproduzir as responsabilidades hoje existentes, em que apenas as informações necessárias para a condução das operações são reveladas aos participantes da transação".

Ele ressalta que, mesmo com a fragmentação de informação, todo o histórico deve ser passível de reconstrução, mediante ordem judicial. "A informação deve estar disponível, mesmo que de forma não consolidada, sob custódia do BC ou de entidades por ele reguladas", completou.

De acordo com o economista do BC, as tecnologias que permitem tal tipo de governança da informação serão testadas ao longo do desenvolvimento do projeto do real digital.

A criação de moedas digitais está no radar de bancos centrais de todo o mundo. De acordo com pesquisa do Atlantic Council, um think tank internacional, 87 países (representando mais de 90% do PIB global) estudam o assunto atualmente. Em maio de 2020, eram apenas 35 países.

As Bahamas se tornaram um grande laboratório ao criar o dólar de areia (sand dollar, em inglês), a primeira moeda digital do mundo emitida por um banco central. Atualmente, nove países já lançaram seus projetos, incluindo a Nigéria.

De acordo com Henriques, existem vários experimentos buscando o equilíbrio correto entre privacidade e rastreabilidade. No caso brasileiro, ele considera que o Pix pode servir de exemplo de solução desenhada para garantir segurança e sigilo simultaneamente.

"Precisamos ter certeza de que as transações são feitas por pessoas ou empresas que existam. É exatamente o que acontece quando cadastramos uma chave Pix, que sempre está associada no DICT (Diretório de Identificadores de Contas Transacionais) a uma pessoa física ou jurídica validada", disse o coordenador do Lift Lab (Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas).

Algumas outras propostas estão em estudo, como soluções que garantam que a moeda digital foi emitida pelo BC ou que assegurem que a validação da transação não acesse o valor total do fundo, além de soluções de "desvinculação" em que transações de uma mesma pessoa não possam ser relacionadas.

Em março, nove projetos foram selecionados pelo BC e pela Fenasbac para participar do desafio Lift Challenge sobre o real digital. Mas o início dos trabalhos foi adiado devido à greve dos servidores, que durou de 1º de abril até a última terça-feira (19), quando foi suspensa durante duas semanas. A implementação do projeto piloto da moeda digital, prevista para o quatro trimestre deste ano, também deve atrasar.

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