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'Na rua não tem pra onde correr. Vai comer o pão que o diabo amassou'

Juliana Iemanjara, 34, conta como é trabalhar como entregadora para quatro apps

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Foto fechada no rosto de uma moça negra que veste um capacete preto e vermelho, no qual foram colocadas tranças rosa e azul. A viseira do capacete está aberta e ela está olhando para o horizonte, em direção ao lado direito da foto

Juliana Iemanjara dos Santos, 34, se prepara para entregar refeições da Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo Rafael Vilela/Fairwork

São Paulo

Juliana Iemanjara Janaina do Nascimento dos Santos, 34, é formada em contabilidade. Cria dois filhos sozinha e desde 2019 é entregadora de aplicativo, além de fazer bicos como garçonete e vender bolos. Por mês, levanta R$ 4.500 em média.

Durante uma semana, seu cotidiano foi documentado pelo fotógrafo Rafael Vilela, que desde o ano 2020 pesquisa o trabalho dos entregadores e da economia de plataformas no Brasil.

O relato abaixo foi dado durante várias entrevistas nesse período.

Meu nome é Juliana Iemanjara, tenho 34 anos. Sou uma mulher negra da periferia, crio meus dois filhos sozinha, com a ajuda da minha mãe, na Vila Inglesa, zona sul de São Paulo.

Trabalho desde 2019 como entregadora de aplicativo. Para complementar minha renda também faço bicos em bares, vendo produtos pela internet e doces nas ruas.

Sou formada em contabilidade e sonho em me aprofundar nos meus estudos para auxiliar o movimento dos entregadores — faço parte do coletivo Entregadores Antifascistas— e também comprar minha casa própria.

Trago sustento sozinha pra minha família. Tenho meus dois filhos, tenho minha mãe. Ela cuida dos meus filhos pra eu fazer esse corre todo. Pago o aluguel, pago prestação da moto, não pode parar, né? Tem que tá o tempo inteiro na rua e fica muito complicado.

Os aplicativos que eu faço são LalaMove e Uber. Esses são os que eu mais faço. Tem o ClickEntrega também, que virou aplicativo agora. Tem alguns outros aplicativos no mercado também, como o Appjusto; esses dias me cadastrei, fui aprovada, só que ele toca muito pouco ainda. Não tem muita demanda, então é um aplicativo que você acaba ligando para complementar os outros aplicativos que você usa.

Do iFood eu fui bloqueada. Eu trabalhava com eles no sistema de OL [Operador Logístico, empresa que fornece mão de obra terceirizada para os aplicativos], que é como se fosse um fixo. Você é funcionário, tem alguém que comanda ali o seu serviço.

Quando resolvi sair desse sistema e entrar pro sistema nuvem [um sistema aberto, em que o entregador supostamente decide as horas e regiões de trabalho], meu supervisor na OL não quis liberar minha conta e me bloqueou. Ele que fez a minha conta, então ele tinha acesso ao email e à senha.

Acho que o único lado bom dos aplicativos é você poder trabalhar, tem muita gente que não consegue carteira registrada, não tem capacitação, estão desempregadas, saíram do sistema penitenciário, essas pessoas vão pro aplicativo. Mas em um trabalho muito precarizado.

Você trabalha a hora que você quer, você consegue articular o seu próprio horário, porque você liga seu aplicativo. Mas nem todos são assim, tem aplicativos , como o Rappi, em que você precisa, sim, trabalhar um determinado tempo pra ser liberado para trabalhar no final de semana, sabe? Umas coisas assim. Se você não cumprir aquilo que eles querem, não liberam determinadas regiões, muitas vezes as que mais tocam. [Em resposta, o Rappi afirmou que "o entregador independente é livre para se conectar quando e onde desejar" e que "não exige tempo de atuação em sua plataforma para liberar entregas em regiões específicas"].

Se pra homem já é complicado fazer esse serviço, pra mulher é o dobro. Não é fácil. Acho que todas as mulheres que estão na rua têm essa noção. Motoqueiro também não respeita o motoqueiro, se vê que é mulher então, piorou.

Na rua você tem que ser desenrolado. Não tem pra onde correr. Vai sofrer. Vai comer o pão que o diabo amassou. Uma questão é usar um sanitário, como é que você faz? Na época da pandemia foi bem complicado porque eu não podia entrar em lugar nenhum. Às vezes em um posto de gasolina ou até num bar você precisa consumir alguma coisa para utilizar o banheiro, mas nem toda hora a gente tem dinheiro pra comprar uma bala, pra comprar uma água.

Já teve vezes que me falaram "nossa, é uma mulher, por isso que demorou". Na verdade eu não demorei cinco minutos pra chegar, mas o cliente provavelmente não estava olhando no aplicativo que o restaurante demorou uma eternidade pra me entregar o pacote. Então ele acha que quem demorou foi eu.

A corrida é calculada do local da retirada até o cliente, mas nem sempre é calculado certo. Considerando o que eu percorri pra chegar até o local da retirada, muitas vezes esse cálculo que o próprio aplicativo fez não é preciso. A gente sabe que percorre muito mais. Às vezes você percorre 8 km pra ganhar R$ 5. É assim que estão os aplicativos. É o que eu sempre falo pra todo mundo: tem que procurar outros meios de renda.

Eu faço bico num bar como garçonete, vendo coisas pela internet. Quando sobra uma grana eu e minha mãe fazemos bolo pra vender, fazemos doces.

O cara que fala que faz R$ 5.000 por mês no aplicativo de entrega não tem vida, não tem família, ele só trabalha pra aquilo por um propósito pra ele. Pro homem muitas vezes é mais fácil, se ele tem filho vai ficar com a mulher, pra ele trabalhar. E a mulherada que sai pra rua, deixa o filho com quem? Quem leva pra escola?

Esses dias postei uma colega que trabalha de bicicleta, que foi com a neném dela fazendo entrega. O aplicativo não te dá auxílio creche. Não tem pra onde correr. Que tempo você tem pra participar de um coletivo, pra correr atrás de alguma coisa e reivindicar seus direitos, que tempo você tem pra isso?

Você trabalha o dia inteiro carregando comida nas costas com fome. Já vi vários moleques que param, tiram a marmita de dentro da moto e sentam na calçada pra comer. Que têm vergonha de pedir pra esquentar em algum lugar, comem a comida fria.

Essa é uma bandeira que nós entregadores começamos a levantar: que os aplicativos conseguissem em num determinado horário ter uma opção lá que você pode clicar e retirar um almoço em um restaurante pra você comer.

Os entregadores não têm um lugar pra descansar. Muitas vezes não têm um lugar para carregar o celular. Não têm nada disso. Aí você pensa em um cara que sai da casa dele de manhã cedo e começa a fazer esse rolê: uma hora ele vai precisar carregar o celular dele.

Nos aplicativos não existe um botão de emergência, se você sofrer um acidente você não vai ser ressarcido, amparado, nem que seja por um determinado tempo, que é o tempo que você vai ficar parado porque sua moto quebrou, porque você se machucou, não tem. Esse é o lado péssimo da coisa.

O risco de acidente existe só pelo fato de a gente sair de casa. O motoqueiro corre um risco maior porque o corpo dele é como se fosse a carroceria do carro, a lataria do carro. Choveu, a gente já reduz a velocidade. A gente ainda vê de vez em quando uns loucos acelerando, mas pô, é a sua vida em cima de uma moto.

Alguns aplicativos, como o iFood, começam a fazer promoção pra pagar mais pros entregadores quando chove, pra compensar que muitos param de trabalhar pelo risco. Alguns entregadores pensam: "Opa, hora de ganhar dinheiro". Eu já trabalhei muito assim em temporal. Mas hoje, quando começa a ficar muito pesado, volto pra casa. Eu tenho três pessoas que dependem de mim, não posso ser irresponsável ao ponto de sair loucamente. O dinheiro paga nossas contas, mas não é tudo.

[Procurado para comentar esse ponto, o iFood afirmou que "o entregador tem a autonomia para atuar na plataforma quando e da forma como desejar e as promoções são realizadas em diferentes dias, horas e momentos da semana para garantir o equilíbrio entre a oferta e demanda no ecossistema."]

As pessoas são viciadas em aplicativo, viciados no valor do aplicativo. Então você vai falar o valor do seu trabalho e elas questionam: "Mas no aplicativo está mais barato". Nessa hora você tem que ter uma argumentação. Explicar que o aplicativo é uma empresa gigante, que tem muito dinheiro e dá desconto pra ter bastante cliente.

Você tem que explicar pra ele o porquê daquele valor, né? Olha o valor da gasolina, além da gasolina, a minha moto, tô gastando pneu, eu tô gastando óleo, motor. No final do ano eu vou ter que fazer o documento da moto, tem a manutenção.

Aprendi com 14 anos a pilotar moto, então eu sempre gostei de moto. Eu faço o que amo, a gente passa a não gostar quando tá trabalhando que nem um condenado, sendo precarizado, recebendo pouco. É lógico, ficamos revoltados.

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