Descrição de chapéu Folhainvest África

Conheça o país africano que adotou o bitcoin como moeda oficial

República Centro-Africana vive conflito armado e 96% da população não tem internet

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Curitiba

Ao adotar nesta semana o bitcoin como moeda oficial, a República Centro-Africana diz "entrar no mapa dos países mais corajosos e visionários do mundo", segundo comunicado oficial da presidência local. A decisão contrasta com a realidade do país em que 96% da população não tem acesso a internet, segundo o Banco Mundial, e que figura entre as piores posições nos rankings econômicos e sociais.

O país no coração do continente africano é o segundo a oficializar o bitcoin como moeda. O primeiro foi El Salvador, em setembro de 2021.

Apesar de estar em uma região rica em recursos minerais, a República Centro-Africana é um dos países mais miseráveis do mundo - Alexis Huguet/AFP

A ONU (Organização das Nações Unidas) classifica a República Centro-Africana como o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre 189 países, atrás apenas de Níger. De acordo com o Banco Mundial, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita da República Centro-Africana (US$ 492,80) é o sexto pior –o equivalente a 7% do PIB per capita brasileiro (US$ 6.796,84).

Com a medida aprovada por unanimidade pela Assembleia Nacional, o bitcoin se torna oficial ao lado do franco RCA central (XAF)–moeda adotada em outros cinco países da região.

A República Centro-Africana conquistou a independência política da França em 1960, mas ainda sofre as consequências dos séculos de exploração. Apesar de estar em uma região rica em recursos naturais como petróleo, urânio, diamantes e terras férteis, tem participação quase insignificante na economia global.

Não bastassem os problemas econômicos e sociais, o país tem um histórico de instabilidade política, corrupção e conflitos armados internos.

A ONU mantém desde 2014 a Minusca (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana). É uma das mais longas operações de paz, que contou com o envio de tropas brasileiras.

A capitão de corveta brasileira Marcia Andrade Braga, membro da Missão de Paz das Nações Unidas na República Centro-Africana (MINUSCA), recebeu o prêmio de Defensora Militar da Igualdade de Gênero da ONU
A capitão de corveta brasileira Marcia Andrade Braga, membro da Missão de Paz das Nações Unidas na República Centro-Africana (MINUSCA), recebeu o prêmio de Defensora Militar da Igualdade de Gênero da ONU - UN Photos

Segundo o Acnur (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), há hoje cerca de 650 mil deslocados internamente e mais de 730 mil refugiados em países vizinhos.

Desde 2019 está em vigor um acordo de paz que tenta manter a estabilidade entre o governo e 14 grupos rebeldes reconhecidos. As milícias controlam partes diferentes do país de 623 mil km² (um pouco maior que o estado de Minas Gerais) e geralmente estão atreladas a grupos religiosos. Estima-se que 80% da população seja cristã e 15% muçulmana.

O relativo sucesso do acordo de paz é o que garantiu a reeleição do presidente Faustin-Archange Touadera em janeiro de 2021 para mais cinco anos de mandato.

Segundo Ana Flávia Watanabe, mestre em relações internacionais que fez sua dissertação sobre a República Centro-Africana, o controle oficial do Estado se limita à região da capital, Bangui. As demais regiões são tomadas pelos grupos paramilitares, que controlam as estradas e a exploração dos recursos naturais.

A violência e a falta de infraestrutura são tão acentuadas que tornam o país quase inacessível para o turismo. O Brasil não tem representação consular ou diplomática lá. A França desaconselha a viagem à República Centro-Africana e recomenda que seus cidadãos circulem apenas na zona central de Bangui, obedecendo ao toque de recolher que vigora da meia-noite às 5h.

Watanabe diz que os conflitos na região se mantêm mediante financiamento de outros países interessados nas riquezas locais, especialmente diamantes e gado.

"É uma população que não tem tanto conhecimento, pois falta acesso a serviços básicos. A maioria das regiões não tem escolas nem hospitais. Não sei como pretendem usar essa moeda [bitcoin] internamente", diz Watanabe.

Daniel Kosinski, doutor em economia política internacional pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em criptoativos, afirma que a medida é mais uma jogada de marketing do que econômica. A novidade leva o país aos cadernos de economia, não a páginas sobre conflitos armados.

Kosinski compara a situação a El Savador, que também adotou oficialmente o bitcoin, mas continua com o dólar americano como moeda corrente na prática.

"É mais um atestado da fragilidade desses países do que sinal de um novo caminho. O bitcoin será também um instrumento que eles não controlam, porque são países sem expectativas de se tornarem soberanos de fato", afirma.

Na opinião do especialista, países com economia forte tendem a ter suas próprias criptomoedas em vez de adotarem o bitcoin. É o que faz a China com sua moeda digital chinesa, que inspira testes também no Brasil.

Kosinski afirma que, em El Salvador, o bitcoin não se tornou efetivamente uma moeda, mas assume aos poucos o papel de meio de pagamento para movimentar valores em dólar. Ele acredita que isso possa acontecer na República Centro-Africana, mas de forma ainda mais limitada, considerando que o acesso da população a equipamentos eletrônicos e internet de qualidade é muito restrito.

"O bitcoin tem a proposta de levar serviço financeiro contornando as dificuldades de um sistema bancário tradicional. Essa é parte da narrativa, que tem um fundo de verdade, mas é simplista. Isso porque a tecnologia pode dispensar agência bancária, mas ainda precisa de telefone celular, internet, nível educacional mínimo e inscrição em uma corretora de criptoativos. Então não é uma coisa simplória", diz Kosinski.

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