Descrição de chapéu machismo

Cozinha para meninos e bonecas negras ganham espaço no mundo dos brinquedos

Indústria foge da ditadura do rosa e do azul e aposta na diversidade

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São Paulo

A mulher branca de cabelos loiros e lisos se senta próximo da mulher negra de cabelos escuros e crespos. A diferença entre elas leva a loira a se incomodar com a presença da negra a ponto de lhe dizer que o cabelo dela pode lhe "passar doenças".

O flagrante de racismo, registrado recentemente no Metrô de São Paulo, talvez pudesse ter sido evitado se, desde pequena, a mulher loira tivesse brincado com bonecas negras. E encarasse como natural não só a pele negra e os cabelos crespos, mas também outras pessoas diferentes dela –com vitiligo, sem cabelo, sem um membro do corpo, acima do peso ou com síndrome de Down.

"As crianças começam a descobrir a vida em sociedade por meio dos brinquedos. É importante que eles representem a diversidade do nosso dia a dia, e com isso contribuam para uma educação mais inclusiva e para um mundo menos preconceituoso", diz a pedagoga Maria Ângela Barbato Carneiro, doutora em Ciências da Comunicação pela USP (Universidade de São Paulo) e professora titular da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), onde coordena o Núcleo Cultura e Pesquisas Brincar.

sete brinquedos, um ao lado do outro, com características diferentes: asiático, loiro, com prótese, careca, cadeirante, gorinha e com vitiligo
Linha Barbie Fashionistas: marca da Mattel se reinventou ao apostar na diversidade - Divulgação

A indústria de brinquedos, que no Brasil faturou cerca de R$ 8,4 bilhões no ano passado, tem procurado fazer a lição de casa. Um movimento iniciado há cerca de cinco anos vem trazendo para as prateleiras das lojas mais bonecos negros, com deficiência física (como cadeirantes) e opções mais coloridas, menos estereotipadas no azul e no rosa, como cozinhas em vermelho para meninos e meninas brincarem.

Segundo Paula Ferolla, analista da empresa de pesquisas Euromonitor, cada vez mais pais e educadores, principalmente da geração Y (nascidos entre 1982 e 1994), entendem a importância da escolha da criança e a deixam livre para brincar, sem impor padrões.

"A diversidade ganha uma perspectiva ainda mais ampla, sendo capaz de influenciar positivamente na formação das crianças", afirma.

"Como um homem vai entender que é natural que ele limpe a casa e cuide dos filhos, se quando pequeno ele aprendeu que isso era coisa de menina?", questiona a pedagoga Maria Ângela.

"Não quiseram que ele brincasse de casinha e de boneca. O preconceito está na cabeça dos adultos e são eles que o transmitem para as crianças."

O movimento de apoio a uma maior diversidade começa a se refletir nas vendas. No Armarinhos Fernando, uma das mais tradicionais e populares lojas de brinquedos da capital paulista, com 16 lojas na Grande São Paulo e em Sorocaba (SP), as bonecas negras já representam 15% das vendas da categoria. ​

No grupo Ri Happy, líder no varejo de brinquedos, com cerca de 300 lojas Ri Happy e PB Kids no país, as bonecas negras somam 20% da categoria, enquanto os brinquedos coloridos (sem ser azul ou rosa) atingiram 60% das vendas no ano passado. Controlada pelo fundo Carlyle, a empresa não revela o faturamento, mas os últimos dados divulgados, de 2019, apontam receita líquida de R$ 1,4 bilhão.

"Os pais vêm mudando, estão mais abertos ao diferente", diz a diretora comercial do grupo Ri Happy, Sandra Haddad. Nos últimos três anos, ela observou uma demanda maior por brinquedos coloridos, em vermelho, verde ou amarelo, na categoria "faz de conta", que engloba mercadinhos e cozinhas, por exemplo.

"Muitos meninos passaram a brincar mais de cozinha por conta do sucesso do programa MasterChef", diz Sandra, referindo-se ao reality de culinária. Segundo ela, tanto meninos quanto meninas amam carrinhos, ônibus e até caminhão de lixo. "Mas são os pais que, muitas vezes, colocam limites às escolhas dos filhos na hora de brincar." ​

brinquedo de cozinha com menino estampado na embalagem
Brinquedos que fogem dos tradicionais rosa e azul, como as cozinhas vermelhas, já representam 60% das vendas da categoria Faz de Conta, na Ri Happy. - Bruno Santos/Folhapress

Ainda assim, Sandra percebe uma demanda crescente de meninos por bonecos, o que vem sendo atendido pela indústria. Em 2019, por exemplo, a Candide lançou o LOL Boys –da mesma linha das famosas bonecas LOL de 8 centímetros, embaladas em uma bola de plástico com várias "surpresas" inseridas, como roupas e acessórios, que se tornaram febre entre as meninas.

Em outubro do ano passado, foi a vez de a Candide apresentar uma versão maior do boneco. "Lançamos o LOL OMG Guys skatista e esgotou em um mês", diz Bruno Verea, diretor de marketing da empresa no Brasil, ressaltando que a expectativa era vender em dois meses.

Para ele, a inclusão do skate nos Jogos Olímpicos chamou mais a atenção das crianças para o esporte.

O executivo também observa um interesse maior das meninas pelo Homem-Aranha. "É um personagem jovem nos cinemas, que agrada os dois públicos", diz.

A Candide vem incrementando a linha Our Generation, de bonecas que imitam a vida em sociedade. São lançamentos recentes as versões cadeirante, com muletas, com prótese na perna e cega com cão guia. "Também temos o cuidado de deixar o nosso portfólio diversificado em etnias, com bonecas negras, asiáticas e ruivas, por exemplo", afirma Verea.

boneca com síndrome de Down de cabelo loiro e roupa azul e rosa
Boneca com síndrome de Down, da Cotiplás: 15% das vendas vão para a Apae, que ajudou a desenvolver o produto - Divulgação

Na brasileira Cotiplás, a novidade apresentada em março durante a principal feira do setor de brinquedos, a Abrin, em São Paulo, foi a linha de bonecas com síndrome de Down, que devem chegar este mês às lojas, nas versões masculina, feminina, branca e negra. Cerca de 15% do preço de venda, sugerido em R$ 129, será destinado à Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), que auxiliou no desenvolvimento dos produtos.

"Hoje as crianças com síndrome de Down dividem o mesmo espaço escolar com outras crianças sem a síndrome. É importante naturalizar essa convivência com quem é diferente de você, a partir dos brinquedos", diz o fundador e diretor da Cotiplás, Carlos Bazzo.

Segundo ele, cerca de 30% das bonecas vendidas pela Cotiplás são negras.

"Nós temos o cuidado de não só mudar a cor da boneca branca, mas desenvolver todo o fenótipo da boneca negra, que envolve encontrar o tom certo de pele, o cabelo, os lábios e o nariz", diz Bazzo, que conta com uma designer negra para desenvolver o trabalho. "Hoje temos uma boneca negra mais realista do que a primeira que fizemos, ainda nos anos 1990."

O empresário agora trabalha em um projeto de bonecos sem cabelos, para representar as crianças com câncer que fazem quimioterapia.

De acordo com a Euromonitor, as categorias que mais se destacaram nas vendas no ano passado são "neutras", que atendem tanto meninos quanto meninas, como jogos de tabuleiro e quebra-cabeças, construção, mini-veículos e jogos científicos e educacionais.

Célia Bastos, diretora comercial da empresa de pesquisas NPD, concorda com a tendência. "Brinquedos envolvendo a família e atividades ao ar livre foram os mais buscados em 2021", diz ela, que aponta um crescimento de 21% nas vendas globais de brinquedos ano passado, em comparação a 2020. No Brasil, a alta foi de 11%, segundo a NPD.

Na pandemia, a compra online de brinquedos disparou, diz Fabrício Dantas, CEO da Neotrust, que monitora o comércio eletrônico brasileiro: "Avançou 67%, para 6 milhões de pedidos, gerando um faturamento de de R$ 1,09 bilhão", diz. "Em 2021, porém, houve um crescimento tímido, para R$ 1,14 bilhão, possivelmente motivado pela reabertura das lojas físicas."

Para este ano, a Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos) projeta um crescimento de 6% no faturamento da indústria, para R$ 8,9 bilhões.

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