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O choque global de estagflação de 2022: quão ruim pode ficar?

Inflação subiu para dois dígitos mesmo com estagnação no mundo todo

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Valentina Romei e Alan Smith
Londres | Financial Times

No ano passado, muitos economistas esperavam que 2022 fosse um período de forte recuperação econômica. As empresas voltariam ao pleno funcionamento após a Covid. Os consumidores estariam livres para gastar suas economias acumuladas de todos os feriados e as atividades que não puderam fazer durante a pandemia. Seriam os novos "estrondosos anos 20", diziam alguns, referindo-se à década de consumismo que se seguiu à gripe de 1918-21.

Avance rapidamente alguns meses, e o paralelo mais comumente citado é a década de 1970, quando o embargo do petróleo árabe ajudou a criar um longo período de dificuldades econômicas. A inflação subiu para taxas de dois dígitos mesmo com a estagnação das economias do mundo todo —uma mistura dolorosa de preços altos e baixo crescimento conhecida como "estagflação".

Agora, a estagflação está novamente nas conversas. Após o duplo choque da Covid-19 e a invasão russa da Ucrânia, as taxas de inflação superaram as expectativas, atingindo os níveis mais altos em décadas em muitos países, enquanto as previsões de crescimento econômico se deterioram rapidamente.

O presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, participa de coletiva de imprensa em Washington, em 4 de maio de 2022. O banco elevou na quarta-feira sua taxa básica de juros em meio ponto percentual, marcando o aumento mais acentuado desde 2000, enquanto toma medidas mais agressivas para conter a inflação mais alta em quatro décadas. - Xinhua/Liu Jie

A perspectiva do retorno da estagflação causa medo nos formuladores de políticas porque existem poucas ferramentas monetárias para lidar com ela. O aumento das taxas de juros pode ajudar a reduzir a inflação, mas o aumento dos custos de empréstimos reduziria ainda mais o crescimento. Enquanto isso, manter as políticas monetárias frouxas pode elevar os preços.

A maioria dos analistas e economistas, incluindo o FMI, não espera uma repetição dos maus velhos tempos da década de 1970 —um período de pestilência econômica que causou sofrimento a famílias e empresas. A inflação ainda não está tão alta quanto naquela época; mais bancos centrais são independentes; e o apoio fiscal está protegendo os mais vulneráveis.

Mas, assim como a crise do petróleo reverberou em toda a economia global na década de 1970, o duplo golpe da pandemia e da guerra pressiona de modo sem precedentes a oferta de bens e serviços em todo o mundo hoje.

Mesmo antes do início da guerra na Ucrânia, os preços haviam atingido picos de várias décadas em muitos países, incluindo Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, à medida que a pandemia interrompeu as cadeias de suprimentos, aumentou a demanda por bens e resultou em políticas monetárias acomodatícias e amplos estímulos fiscais.

A guerra só exacerbou esses problemas. A Rússia e a Ucrânia produzem grande parte da oferta global de gás, petróleo, trigo, fertilizantes e outros materiais, elevando os preços de energia e alimentos, especialmente na Europa.

Este é o "maior choque de commodities que experimentamos desde a década de 1970", diz Indermit Gill, vice-presidente de crescimento equitativo, finanças e instituições do Banco Mundial. No caso de uma guerra prolongada ou sanções adicionais à Rússia, "os preços podem ser ainda mais altos do que os projetados atualmente", acrescenta.

As previsões parecem sombrias. O consenso hoje é que o crescimento econômico global seja de apenas 3,3% em média este ano, abaixo dos 4,1% esperados em janeiro, antes da guerra. A inflação global está prevista em 6,2%, 2,25 pontos percentuais acima da previsão de janeiro. Da mesma forma, o FMI rebaixou sua previsão para 143 economias este ano —que respondem por 86% do Produto Interno Bruto global.

A estagflação é importante porque poucos economistas concordam em como pará-la depois de iniciada. Também causa grande sofrimento, potencialmente em longo prazo, para empresas e famílias de classe média e de baixa renda. "Em termos econômicos, o crescimento está baixo e a inflação, alta", diz Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI. "Em termos humanos, a renda das pessoas caiu e as dificuldades aumentaram."

Maré baixa mundial

O choque estagflacionário de 2022 é verdadeiramente global, com expectativas divergentes de crescimento e inflação na maioria dos países, e muitos fatores diferentes exacerbando a tendência de maneira sincronizada.

Em vários países tendências semelhantes podem ser observadas –um aumento surpreendente nos preços e um declínio da atividade nos últimos meses– à medida que as expectativas para o ano se deterioram.

Em toda a Ásia, as previsões de forte crescimento foram revisadas para baixo devido aos ventos contrários da guerra na Ucrânia e novas interrupções no fornecimento e demanda mais fraca resultantes dos novos bloqueios da China e da política de Covid-zero de Xi Jinping.

A inflação está mais baixa na Ásia do que em outros países, mas está subindo após o aumento global dos preços de alimentos e energia. Na Coreia do Sul, por exemplo, os preços ao consumidor atingiram a maior alta de dez anos em março.

Em alguns países da América Latina, particularmente no Brasil, o aperto agressivo da política monetária adotado para conter a inflação resultou em rápida deterioração das perspectivas econômicas. A Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe revisou para baixo as perspectivas de crescimento para a região em 27 de abril, alertando para uma "conjuntura complexa" de desafios relacionados à guerra na Ucrânia.

Apesar de limitados à Europa, os efeitos da guerra "estão sendo sentidos em todo o mundo, pois o aumento dos preços da energia e dos alimentos afeta os mais vulneráveis, principalmente na África e no Oriente Médio", disse David Malpass, presidente do Banco Mundial.

Mas certamente o choque econômico da guerra está sendo mais sentido na Europa, especialmente nos países que dependem muito do petróleo e do gás russos.

A região europeia como um todo é altamente vulnerável a interrupções no fornecimento de energia, com 40% do gás da UE vindos da Rússia. Os preços da energia ao consumidor já subiram em março, com o sentimento das empresas e do consumidor despencando. Muitos especialistas estão alertando que uma proibição da UE ao gás russo desencadearia uma das mais profundas recessões das últimas décadas na Alemanha e na zona do euro.

As retaliações russas às exportações de energia também ameaçam as perspectivas econômicas da região, o que foi parcialmente percebido na semana passada quando a gigante estatal Gazprom disse que cortaria o fornecimento para a Polônia e a Bulgária.

"Se Moscou interromper abruptamente o fluxo de gás natural para a Alemanha e outras economias da UE, a Europa ficará às voltas com uma nova crise econômica, que, como a crise do euro de 2011-12 ou a da Covid de 2020, pode novamente representar uma ameaça existencial para a sobrevivência da moeda única", diz Tom Holland, da Gavekal Research.

Mesmo sem cortes de gás, o crescimento na zona do euro desacelerou para apenas 0,2% no primeiro trimestre, enquanto a inflação subiu para um recorde de 7,5%. "Este será um ano de estagflação" na zona do euro, diz Andrew Kenningham, economista-chefe para a Europa da Capital Economics. "Os preços mais altos da energia manterão a inflação elevada, reduzirão a renda das famílias e prejudicarão a confiança dos negócios."

A Alemanha está entre os países mais atingidos, com seu grande setor manufatureiro e alto uso de energia e a economia orientada para a exportação. Nos últimos seis meses, os economistas reduziram pela metade sua previsão de crescimento econômico para a Alemanha em 2022, enquanto as expectativas de inflação são três vezes maiores.

Fora da UE, a economia do Reino Unido sofre pressões semelhantes nos preços da energia e estagnação do crescimento este ano, após o que é previsto como a maior queda na renda real desde o início dos registros, na década de 1950.

No entanto, no Reino Unido, os altos preços dos produtos importados se somam a um mercado de trabalho apertado que aumenta a perspectiva de uma alta inflação mais persistente. A taxa de desemprego no Reino Unido está no nível mais baixo desde o início dos anos 1970, e as vagas de emprego são as mais altas já registradas, arriscando uma "espiral salário-preço" quando as demandas de salários mais altos aumentam ainda mais os preços.

"Essa combinação de choques de oferta e um mercado de trabalho apertado tende a nos dar mais um problema [de inflação persistente]", disse Andrew Bailey, presidente do Banco da Inglaterra, ao Financial Times em entrevista este mês.

Mas são os Estados Unidos que enfrentam "de longe o maior risco de inflação dramática e espirais de preços salariais", disse Anatole Kaletsky, economista da empresa de pesquisa de investimentos Gavekal. A inflação atingiu 8,5% em março e os investidores esperam que ela suba ainda mais. A economia se contraiu inesperadamente no primeiro trimestre, desafiando as previsões.

O mercado de trabalho nos EUA, por sua vez, é o mais aquecido da história do pós-guerra, com mais de 5 milhões de vagas de emprego a mais do que trabalhadores desempregados, segundo Daan Struyven, economista do Goldman Sachs.

A natureza superaquecida do mercado de trabalho, disse o ex-secretário do Tesouro Larry Summers em uma análise recente, sugere "uma probabilidade muito baixa de que o Federal Reserve possa reduzir a inflação sem causar uma desaceleração significativa da atividade econômica".

Struyven observa que sinais de mercados de trabalho apertados são visíveis na maioria dos países de língua inglesa do G10, incluindo Reino Unido, Canadá e Austrália.

A saúde do mercado de trabalho afeta o que os formuladores de políticas devem fazer em relação à inflação alta, o que, por sua vez, afeta os custos de empréstimos e os padrões de vida.

As pressões mais fortes sobre os preços domésticos provenientes do crescimento dos salários e da inflação central, que exclui energia e alimentos, geraram expectativas de vários aumentos de taxas no Reino Unido e nos EUA.

Os mercados futuros hoje refletem uma probabilidade de 80% de que a taxa dos fundos federais dos EUA chegue a 1,5% em junho, de acordo com a ferramenta FedWatch do CME.

Por outro lado, o Banco Central Europeu não aumentou as taxas em mais de uma década da atual de -0,5%, apesar de ter taxas de inflação semelhantes às do Reino Unido e dos EUA, que também são as mais altas da história da união monetária.

Christine Lagarde, presidente do BCE, disse recentemente que os EUA e a Europa estão "enfrentando uma fera diferente". Na América, é o mercado de trabalho apertado empurrando os preços para cima. Na Europa, é o aumento dos custos de energia.

"Se eu aumentar as taxas de juros hoje, não vai baixar o preço da energia", disse Lagarde. Mas mesmo na zona do euro o aumento excepcional da inflação levou o mercado a precificar em 80 pontos-base os aumentos de juros do BCE até o final do ano.

A perspectiva global "de endurecimento monetário aumentou notavelmente, assim como o potencial de estagflação", diz a empresa de classificação de crédito Fitch.

Voltando o relógio

A questão agora é quanto tempo esse choque estagflacionário vai durar –e se uma queda prolongada no estilo dos anos 1970 ainda é uma possibilidade.

Naquela época, a inflação alcançou taxas de dois dígitos durante quase uma década, após um grande aumento nos preços do petróleo quando os países árabes pararam de exportar para muitos países ocidentais como punição por fornecerem ajuda a Israel durante a guerra do Yom Kippur.

A inflação alta persistente empurrou as taxas de desemprego para níveis elevados em muitas economias avançadas, deixando para trás os anos de êxito após a Segunda Guerra Mundial.

Embora os aumentos acentuados de hoje nos preços das commodities ecoem os da década de 1970, há muitas diferenças em relação a esse período. Muitos economistas esperam que a inflação desacelere no próximo ano, apontando que a dependência mundial de combustíveis fósseis é menor agora.

As famílias agora podem amortecer o golpe dos custos elevados de energia com as economias acumuladas durante a pandemia. Muitas economias, principalmente as ricas, adotaram medidas para proteger os grupos mais vulneráveis do impacto do aumento dos preços, incluindo subsídios aos custos de combustível e energia.

No entanto, outras tendências são fonte de preocupação tanto para o crescimento quanto para a inflação, somando-se a uma perspectiva altamente incerta.

Embora o crescimento do preço do petróleo possa ser mais fraco do que naquela época, o aumento do preço do gás foi rápido e suficiente para empurrar o crescimento anual dos preços ao produtor alemão em março para o ritmo mais alto desde que os registros começaram em 1949, e o dobro do ritmo da década de 1970.

Embora os salários não sejam mais indexados à inflação como eram na década de 1970, os mercados de trabalho historicamente apertados nos EUA e na Europa aumentam o risco de a inflação se tornar mais arraigada na economia. Aconteça o que acontecer com os preços de commodities e bens em curto prazo, "o ponto-chave continua sendo que a alta inflação provavelmente só terá a escala sustentada vista na década de 1970 se as espirais de preços e salários evoluírem", disse Vicky Redwood, economista da Capital Economics.

As previsões também podem ser excessivamente otimistas. Os dados econômicos muitas vezes já contrariaram as expectativas, e "o crescimento [este ano] pode desacelerar mais do que o previsto, e a inflação pode ficar mais alta do que o esperado", diz o FMI.
Há mais bancos centrais independentes, e a credibilidade da política monetária de modo geral se fortaleceu ao longo das décadas, mas o aumento das taxas prejudica empresas e famílias num momento em que elas já veem sua renda real corroída pelo aumento dos preços.

Com os níveis de dívida pública e privada em altas históricas como proporção do PIB, "os banqueiros centrais poderão levar a normalização de políticas apenas até certo ponto antes de arriscar um colapso financeiro nos mercados de dívida e ações", alerta Nouriel Roubini, professor de economia e negócios internacionais na Escola de Administração Stern da Universidade de Nova York.

Também é possível, acrescenta Silvia Dall'Angelo, economista da empresa de gestão de investimentos Federated Hermes, que a pandemia e a guerra na Ucrânia "tenham catalisado algumas mudanças estruturais, revertendo algumas das forças que causaram a desinflação nas décadas anteriores", incluindo a globalização.

O resultado é que as projeções de inflação global estão sendo revisadas para cima para o próximo ano, enquanto as expectativas de crescimento se deterioram. Se isso acontecer, significará uma erosão dos lucros das empresas e do poder de compra das famílias por mais tempo, com a alta inflação afetando mais duramente as famílias de baixa renda.

"Pode não ser exatamente como na década de 1970", diz Luigi Speranza, economista-chefe global do BNP Paribas Markets 360, "mas ainda parecerá estagflação."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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