Descrição de chapéu Financial Times Guerra da Ucrânia

Comida ou combustível? Guerra da Ucrânia aguça debate sobre uso de grãos para energia

Ativistas querem desviar as matérias-primas dos biocombustíveis, mas isso aliviaria os níveis crescentes de fome?

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Emiko Terazono Camilla Hodgson
Londres | Financial Times

O aumento dos preços dos alimentos causado pela Guerra da Ucrânia agravou o risco de fome, intensificando a pressão sobre os produtores de combustíveis derivados de grãos e provocando um debate sobre "alimentos versus biocombustíveis".

Antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, a produção global de biocombustíveis era recorde. Nos Estados Unidos, o principal produtor, 36% da produção total de milho foi para biocombustíveis no ano passado, enquanto o biodiesel recebeu 40% do óleo de soja produzido.

Mas algumas empresas de alimentos e formuladores de políticas estão pedindo que biocombustíveis deixem de ser misturados a gasolina e diesel nas proporções atuais, para assim aumentar a oferta global de grãos e óleos vegetais para a alimentação.

Colheita de cana na Usina São Martinho, em Pradópolis (SP) Mauro Zafalon / Folhapress - Mauro Zafalon-14.set.2018/ Folhapress

"Este não é o momento [para os governos] incentivarem a conversão de culturas alimentares em energia por meio de estímulos políticos artificiais ou metas obrigatórias de mistura", disse o Instituto Internacional de Pesquisa de Políticas Alimentares, com sede em Washington.

A Rússia e a Ucrânia, somadas, produzem quase um quinto do milho do mundo e mais da metade do óleo de girassol, mas as exportações agrícolas dos países estão em uma fração dos níveis anteriores à guerra.

A quantidade total de culturas usadas anualmente para biocombustíveis é igual ao consumo de calorias de 1,9 bilhão de pessoas, segundo a empresa de dados Gro Intelligence.


Os biocombustíveis causam problemas nos mercados de alimentos?

Os biocombustíveis –etanol, feito de milho e cana-de-açúcar, e biodiesel, feito de óleos vegetais, incluindo óleo de soja e óleo de palma– foram misturados ao combustível para motores desde o início dos anos 2000, para aumentar a oferta de energia e reduzir o impacto ambiental dos combustíveis fósseis.

Os biocombustíveis foram responsabilizados em parte pela última crise alimentar em 2007-08. Estudos, inclusive do Banco Mundial e do FMI, sugeriram que o crescimento dos biocombustíveis contribuiu com 20% a 50% do aumento do preço do milho durante a crise.

Seu uso crescente foi descrito como "um crime contra a humanidade" pelo então relator de direitos alimentares da ONU.

Mas os produtores de biocombustíveis afirmam que tiveram um papel mínimo desta vez. "Os biocombustíveis não causaram esta crise –nem o preço nem a contração da oferta", disse James Cogan, da Ethanol Europe, um grupo de lobby da indústria.

Os preços altos não têm a ver com a demanda, mas refletem "condições comerciais erráticas e altos preços de energia", acrescentou. Reduzir a produção de biocombustíveis "não aliviaria materialmente a crise de preços".

A limitação dos biocombustíveis reduziria a fome no mundo?

Uma redução de 50% nos grãos usados para a produção de biocombustíveis na Europa e nos Estados Unidos compensaria todas as exportações perdidas de trigo, milho, cevada e centeio da Ucrânia, segundo o Instituto de Recursos Mundiais (WRI na sigla em inglês), um grupo de estudiosos de Washington.

Embora a produção agrícola tenha aumentado junto com a produção de biocombustíveis, o que significa que a quantidade disponível para suprimentos alimentares não diminuiu, o uso de biocombustíveis não pode aumentar exponencialmente sem causar danos ao meio ambiente, disseram ativistas.

"Em um mundo com insegurança alimentar, precisamos pensar muito criticamente sobre esses recursos limitados, para tentarmos alimentar o mundo e resolver a crise climática", disse Oliver James, pesquisador da Universidade de Princeton que ajudou a compilar os dados do WRI.

Maik Marahrens, do grupo de campanhas ambientais Transport & Environment, com sede em Bruxelas, disse que na UE cerca de 10 mil toneladas de trigo, o equivalente a 15 milhões de pães, são queimadas diariamente como etanol em carros.

A indústria do etanol diz que tais comparações são injustas. A maior parte do grão usado para produzir combustível é trigo para ração, que é usado na alimentação animal, e não o trigo refinado, que é transformado em pão, argumentou a indústria.

Executivos do setor de biocombustíveis disseram que a quantidade de trigo usada em biocombustíveis é insignificante –cerca de 2% da safra total, de acordo com a associação industrial UFOP.

"Nesse contexto, é um pouco surreal elevar o etanol de trigo até mesmo a um tema de conversa na atual crise sobre o pão", disse Eric Sievers, diretor de investimentos da ClonBio, que possui a maior biorrefinaria de grãos da Europa, localizada na Hungria, assim como da Ethanol Europe.

Seria mais prejudicial limitar os biocombustíveis?

Executivos da indústria argumentam que os biocombustíveis criam eficiências que nutrem animais e, indiretamente, os humanos.

A indústria é uma grande produtora de ração animal, uma vez que o processo de transformação de grãos em etanol cria subprodutos de proteína e gordura com os quais se alimentam frangos, vacas e porcos.

Citando o impacto apenas na UE, Cogan disse que limitar a produção de biocombustíveis "resultaria em perda de energia renovável, perda de independência energética, perda de empregos, perda de segurança de renda agrícola, aumento das importações de combustíveis fósseis, aumento das emissões de carbono e aumento das importações de farelo de soja [para alimentação animal] das Américas".

As políticas de biocombustíveis estão mudando?

Na UE, a Bélgica e a Alemanha estão considerando flexibilizar as diretrizes sobre mistura de biocombustíveis para abordar a segurança alimentar.

A Agência Internacional de Energia reduziu sua previsão de crescimento dos biocombustíveis para este ano em 20%, prevendo que a demanda global aumentará 5% em relação a 2021, para 8,5 bilhões de litros.

Nos EUA, onde o etanol de milho mais barato é o principal biocombustível, Washington tentou conter o aumento dos preços da gasolina permitindo que o nível mais alto de mistura, que normalmente é reduzido durante os meses de verão devido a preocupações com a poluição, continue temporariamente.

Mas os incentivos governamentais para o biodiesel e o declínio das exportações globais da Ucrânia aumentaram a competição pelo óleo de soja, apertando os suprimentos para grupos de alimentos nos EUA.

"[Os fornecedores de óleo de soja] não podem me dar uma cotação [de preço] porque não podem aceitar minha empresa. Não há óleo suficiente para todos", disse Ed Cinco, diretor de compras da Schwebel's, uma padaria em Ohio.

Embora a China tenha alertado os produtores de etanol de que "controlará rigorosamente o processamento do etanol feito de milho", a Índia está avançando com metas para aumentar as cotas de mistura. Os preços do açúcar, principal matéria-prima do bioetanol no país, aumentaram menos que os de outras culturas.

Embora a ação coordenada sobre segurança alimentar tenha avançado rapidamente na agenda, houve pouco debate sobre os limites dos biocombustíveis em nível internacional.

Em vez disso, os países que usam biocombustíveis devem equilibrar segurança alimentar e sustentabilidade com custos de energia e independência, disse Nicolas Denis, sócio da McKinsey. Os governos precisam decidir "como é o uso sustentável da terra, dadas as diferentes prioridades", acrescentou.

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