Lições de Henry Ford sobre a bagunça atual nas cadeias de suprimento

Pioneiro da indústria automobilística acreditava que interesses de curto prazo não deveriam afetar o investimento na resiliência de um negócio

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Peter S. Goodman
Dearborn (EUA) | The New York Times

Henry Ford, o padrinho da produção em massa, vivia atormentado pela possibilidade de ver seus estoques de componentes e matérias-primas esgotados. Suspeitoso dos financistas —um espírito que alimentava seu fervoroso antissemitismo—, ele desconfiava especialmente de seus fornecedores.

Ford se preocupava obsessivamente com a formação de estoques de suprimentos suficientes para que suas linhas de montagem pudessem continuar a operar sem qualquer escassez debilitante.

Ele comprou minas de carvão no Kentucky e Virgínia, e ferrovias que transportassem o produto dessas minas para suas fábricas. Montou uma frota de navios que percorriam os Grandes Lagos, transportando um suprimento constante de madeira e de minério de ferro, obtido da península superior do estado do Michigan.

E construiu um complexo imenso em River Rouge, perto de Detroit, um conjunto de fábricas projetadas para lidar com cada passo da transformação de matérias-primas em automóveis prontos.

Ford lutou contra seus acionistas, em um caso indo ao tribunal para argumentar que sua empresa deveria investir seu dinheiro para construir uma nova fábrica - The New York Times

Passado um século, o complexo de River Rouge continua em operação, mas vem sofrendo com a escassez de um componente que teria horrorizado Ford. A companhia que ele fundou não consegue adquirir semicondutores, os chips de computador que servem como cérebro dos carros modernos, em quantidade suficiente.

A Ford depende pesadamente de um único fornecedor de chips, localizado a mais de 11 mil quilômetros de distância, em Taiwan. Dada a escassez de chips na economia mundial, a Ford e outras montadoras de automóveis se viram forçadas a suspender suas operações, intermitentemente.

Henry Ford foi um homem celebrado popularmente em sua era, mas hoje seu legado gera condenação. Ele defendia a supremacia branca e apregoava um estridente antissemitismo. Recorreu a violência brutal contra o movimento trabalhista que por fim conseguiu sindicalizar suas fábricas. E obteve um controle monopolístico sobre o mercado de automóveis de preço acessível.

Ainda assim, sua filosofia de gestão —e especialmente sua vigilância contra se ver pressionado pelos fornecedores— oferece insights fortes sobre o desordenamento nas cadeias de suprimento, que se tornou uma das principais causas de inflação e de escassez de produtos.

Ford compreendia que as cadeias de suprimento eram frágeis, e que necessitavam de constante escrutínio e de planos de contingência.

A despeito de sua hostilidade para com os sindicatos, ele compreendia o valor de salários generosos na motivação dos trabalhadores.

E alertou que as demandas dos investidores por ganhos em curto prazo poderiam representar uma ameaça para a resiliência em longo prazo.

Se estivesse vivo hoje, "Ford sem dúvida produziria os chips usados em seus carros", diz Mike Skinner, fundador da Henry Ford Heritage Association.

As pessoas que comandam a Ford afirmam que isso é uma simplificação excessiva. A picape F-150 produzida em River Rouge usa mais de 800 tipos de chips, e isso torna necessário depender de empresas especializadas.

E os chips não duram muito quando armazenados, o que torna difícil formar estoques desse componente.

A linha de montagem do F-150 Lightning, a versão elétrica da popular picape da Ford, em produção em Dearborn, Michigan - Brittany Greeson - 25.jan.2022/The New York Times

A adoção pela Ford dos estoques "just in time" –o que envolve manter um mínimo de estoques para minimizar custos– "foi propelida pelos mercados de capital e seu foco é o retorno sobre o capital investido", diz Hau Thai-Tang, vice-presidente de plataformas industriais da Ford.

Ou seja, a estratégia da Ford para a obtenção de seus chips foi orientada pelos interesses de uma categoria de interessados que o fundador da empresa desdenhava e via como potencial ameaça à vitalidade de seus negócios –os acionistas.

Ford travou batalha com seus acionistas

Henry Ford muitas vezes resistia à exigência de que pagasse dividendos –o que enriquece os investidores– e preferia aplicar seus lucros à expansão do negócio.

Essa tensão foi exposta publicamente em 1916, quando Ford entrou em choque com alguns de seus primeiros investidores, os irmãos Dodge, que também estiveram entre os primeiros inovadores da indústria automobilística.

O lucro da Ford no ano anterior tinha chegado a US$ 16 milhões, e a companhia tinha reservas de caixa de mais de US$ 50 milhões paradas nos bancos. Ford insistia em que o dinheiro fosse dirigido à construção de sua nova fábrica, em River Rouge.

Os irmãos Dodge insistiam-no pagamento de dividendos, e abriram um processo judicial contra a empresa buscando obtê-los.

Eles apelaram a um tribunal por uma liminar que congelasse os planos de expansão de Ford em River Rouge.

O tribunal acatou o pedido, o que enraiveceu Ford: os irmãos Dodge estavam colocando em risco não só os seus planos de expansão mas o princípio central de organização de sua empresa.

"Não acredito que deveríamos realizar um lucro tão bruto com nossos carros", ele disse no banco de testemunhas, no julgamento do caso. "Minha política sempre foi forçar a queda do preço dos carros o mais rápido que a produção permitisse, e transferir os benefícios disso aos usuários e trabalhadores".

O Modelo T em exposição no museu Henry Ford em Dearborn - Cydni Elledge - 24.mai.2022/The New York Times
Um F-150 Lightning em produção. A adoção do estoque Just in Time pela Ford “está focada no retorno do capital investido”, disse um executivo da empresa. - Brittany Greeson - 25.jan.2022/The New York Times

O conflito foi alimentado em parte pela decisão da Ford, dois anos antes, de basicamente dobrar a remuneração de seus trabalhadores, para então inéditos US$ 5 ao dia. Outros líderes empresariais o acusaram de colocar as empresas deles em risco ao forçar uma alta de salários em toda a indústria americana.

Ford insistiu em que estava simplesmente sendo pragmático. O advento da linha de montagem havia transformado a fabricação de carros em rotina, com tarefas robóticas e repetitivas, e isso estava levando a que se demitissem em massa.

Ford usou o salário mais alto —também destinado em parte a combater os esforços de sindicalização— como forma de atrair pessoal suficiente para produzir um volume cada vez maior de carros.

"Um negócio de salários baixos é sempre inseguro", ele declarou.

Sob questionamento severo, durante o julgamento do processo dos irmãos Dodge, Ford declarou que o objetivo verdadeiro de seu negócio era criar empregos e produzir carros de preço acessível, e que o dinheiro era apernas um resultado incidental, de acordo com o relato de Richard Snow em "I Invented the Modern Age", sua biografia de Henry Ford.

"Os negócios são um serviço, não uma bonança", disse Ford.

O tribunal superior do Michigan terminou por rejeitar esse conceito. "Uma corporação de negócios é organizada e operada primariamente para o lucro de seus acionistas", os juízes decidiram.

Essa decisão se tornou um dos marcos no avanço dos acionistas americanos rumo à primazia.

O tribunal decidiu em favor dos irmãos Dodge e ordenou que Ford distribuísse cerca de US$ 25 milhões em dividendos, embora ele tenha recorrido e conquistado o direito de prosseguir com a construção do complexo de River Rouge.

Ford mais tarde forçou a saída dos irmãos Dodge de sua empresa, adquirindo as ações deles e assumindo o controle de sua companhia.

Ele não teria aceitado uma escassez que resulte de dependência indevida de um fornecedor incapaz de satisfazer a demanda de sua empresa.

"Ele provavelmente demitiria quem quer que tivesse decidido isso", disse Willy Shih, especialista em comércio internacional na escola de administração de empresas da Universidade Harvard. "Ele sabia que precisava ter controle da companhia antes que pudesse produzir um carro para as massas."

Tradução de Paulo Migliacci

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