'Quem pode falar de responsabilidade fiscal é Lula', diz economista do PT

Guilherme Mello afirma que prioridade é aquecer economia e reduzir dívida pública

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São Paulo

As primeiras diretrizes do plano de governo da chapa Lula-Alckmin preveem o fim do teto de gastos e a revogação da reforma trabalhista, mudanças aprovadas no governo Temer (2016-1018).

Segundo o professor da Unicamp Guilherme Mello, 39, coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas - Economia do PT (que compartilha a função com Aloizio Mercadante), um eventual governo Lula buscará um novo regime fiscal, baseado em experiências internacionais, que priorize o gasto social, dinamize a economia e reduza a relação dívida/PIB —principal indicador de solvência do país.

"Temos 33 milhões de pessoas passando fome. A prioridade é atender essas pessoas com políticas públicas" diz Mello. "Do ponto de vista do economista, isso é gasto. Mas há o impacto multiplicador desse gasto."

Mello defende que o PT foi e voltará a ser responsável fiscalmente. "Se tem alguém que pode falar em responsabilidade fiscal, esse alguém é o Lula."

Sobre a reforma trabalhista, afirma que não se trata de "voltar para a antiga CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)" e que nem tudo na área que foi aprovado no governo Temer "não presta".

Guilherme Mello, coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas - Economia, do PT - Jardiel Carvalho/Folhapress


Em seu programa de diretrizes, o PT diz querer "recolocar os pobres e os trabalhadores no Orçamento". Mas afirma que "é preciso revogar o teto de gastos e rever o atual regime fiscal brasileiro". Como fazê-lo mantendo as contas públicas em ordem? Temos que ter claro que, sem crescimento, é muito difícil conseguir algum tipo de trajetória fiscal positiva. O crescimento dinamiza o mercado, gera receita, formaliza uma parte dos trabalhadores. Tudo isso tem impacto fiscal relevante. Além de aumentar o PIB, que é o denominador. E o principal [no controle fiscal] é a relação entre [o tamanho da] dívida [pública] e o PIB.

As políticas distributivas têm um papel na retomada do crescimento. Uma coisa alimenta a outra. Politicas bem desenhadas que aumentem a renda e o emprego terão impacto no crescimento, que vai ajudar, no médio e longo prazos, a conquistar a sustentabilidade.

Nos governos Lula tivemos aumento do investimento público, tanto no social quanto na infraestrutura, e queda na relação dívida/PIB. O crescimento é um tema, mas não o único.

O atual arcabouço perdeu a credibilidade. O Bolsonaro já furou o teto em seu governo e tem mais essa tentativa absurda de modificar o ICMS [para baratear combustíveis], que vai ser caríssimo e terá pouco efeito sobre os preços. Além de tirar financiamento da saúde e da educação. Um terror.

A regra [do teto] tinha problemas de desenho e vem sendo desrespeitada sistematicamente. O teto não cumpriu o que prometia, não só no sentido de crescimento e aumento do investimento.

Ele piorou a qualidade e a transparência do gasto público, com emendas do relator e orçamento secreto, colocando os investimentos numa mínima histórica.

O que colocar no lugar do teto? Qual é a proposta? Estamos olhando os princípios de arcabouços fiscais consagrados na literatura e na experiência internacionais. Se é flexível, anticíclico, se prioriza gastos distributivos de alto multiplicador, com dimensões de acompanhamento dos gastos.

Há vários formatos possíveis. Tem países com regra de gasto. Outros, de resultado primário ou nominal. Ou com regra para o resultado ajustado pelo ciclo [econômico], ou ao longo do ciclo. Há países com regras de dívida [relação dívida/PIB] definida.

O melhor será aquele que construa um consenso acerca da regra. O que importa é que, independente do formato, ela respeite os princípios.

Hoje temos três regras: a de ouro [que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como salários e custeio], o teto [que limita o aumento da despesa à inflação do ano anterior] e a Lei de Responsabilidade Fiscal [que fixa limites para as despesas com pessoal, entre outros].

As três não conversam entre si, são de gerações diferentes e não respeitam mais o que se estabelece como boa regra fiscal na literatura internacional.

Quem vai definir a nova regra será o novo governo e o novo Congresso. Eles não estão eleitos ainda. Tudo pode ser negociado. O que não é recomendável é tentar fazer uma regra que fuja aos princípios estabelecidos na literatura e experiência internacionais como adequada.

Faz parte da orientação a geração de superávits primários para controlar a dívida pública? Obviamente que o objetivo principal será estabilizar ou reduzir a relação dívida/PIB. Quando se fala em sustentabilidade, o principal indicador é a relação dívida líquida/PIB. O superávit primário é um componente dessa equação. Existem outros, como reduzir a inflação e os juros. Temos que construir uma trajetória nessa direção.

O desenho vai depender. Quando falamos em regra de gasto, o controle é pelo gasto, que é o teto. Nesse caso, o resultado primário pode variar. Pois, em alguns anos, a arrecadação pode vir melhor do que em outros. Posso ter também uma regra de resultado, que pode ser ajustado tanto do lado do gasto quanto da receita. Outros países têm regra para limite da dívida, o que acho um pouco mais complicado.

Independente de qual será o desenho do novo arcabouço, o que importa é que ele tenha um objetivo: compatibilizar a possibilidade de reativação dos investimentos e do crescimento projetando uma trajetória fiscal de estabilização e redução da dívida no médio e longo prazos.

A maior justificativa para a adoção do teto foi que o gasto público cresceu 6% ao ano, acima da inflação, entre 1997 e 2016. Isso foi pago com aumento da carga tributária e do endividamento público. A negociação será com o Congresso, bom em criar despesas, mas sem tanto critério sobre fontes de receita. Uma regra de gasto não é mais segura? Podemos criar uma regra de gastos mais alinhada às experiências internacionais. A nossa é muito ruim e promoveu a piora na qualidade do gasto, a deterioração dos serviços públicos e não é mais sustentável ou crível. Tanto é ruim que quem a defende, fura.

Uma das coisas muito claras na literatura internacional é priorizar investimentos sociais e em infraestrutura, com maior efeito multiplicador para distribuir renda e aumentar a produtividade.

Quando Lula assumiu, em 2003, o Brasil fazia superávits para controlar a dívida desde 1999. No biênio 2004/2005, eles chegaram a 3,7% do PIB; e a economia deslanchou. Parece haver compreensão de que isso foi importante. Mas só em 2021 voltamos a ter superávit [0,75% do PIB], após sete anos de déficit, iniciados em 2014, no governo Dilma. O que seria mais prudente: perseverar um pouco no atual caminho ou gastar mais de saída? Há um desafio à frente. Temos 33 milhões de pessoas passando fome, com a miséria tomando conta do país. Isso é inaceitável e, antes de qualquer coisa, a prioridade é atender essas pessoas com políticas públicas.

Do ponto de vista do economista, isso é gasto. Mas há o impacto multiplicador desse gasto, que é claramente dinamizador, como foi nos governos Lula.

Sim, tem uma discussão sobre o arcabouço fiscal e como ele será reformado. O que o Lula representou em seus governos é que haverá investimento pesado no social. E precisamos pensar também o lado da receita, com uma estrutura tributária mais eficiente.

Uma vez vencida a eleição, Lula estará legitimado pelas urnas, com uma base parlamentar reforçada, espero. Ele poderá abrir o diálogo para encontrar a solução para esses investimentos.

Existe muita gente que mantém a narrativa de que os governos do PT gastaram demais e quebraram o Brasil. Isso não é verdade.

A dívida líquida era de 60% em relação ao PIB em 2002, antes do Lula assumir. Ela caiu pela metade no governo Dilma [para 30,6% do PIB em 2013].

Mas isso virou no governo Dilma. É verdade que o fluxo das receitas diminuiu logo depois e que o das despesas cresceu, embora menos do que antes, e que isso foi retirando espaço fiscal do governo [a partir de 2014, quando as contas públicas se tornaram deficitárias e assim ficariam por sete anos, até 2021]. Mas falar que houve gastança e que o PT quebrou o país não tem respaldo nos dados.

Nos governos do PT, o Brasil não só reduziu pela metade a dívida líquida como o fez pagando toda a dívida externa [em 2005, quando saldou antecipadamente US$ 15,5 bilhões que devia ao FMI] e acumulando U$ 370 bilhões em reservas internacionais.

É verdade que tivemos um déficit em 2014 [0,6% do PIB] e não estou negando que tenha havido uma deterioração. Mas não é verdadeira a narrativa de que a crise ocorre por gastança e irresponsabilidade.

Se tem alguém que pode falar em responsabilidade fiscal, esse alguém é o Lula. Agora, precisamos de um arcabouço fiscal novo, mas ele precisa dialogar com a realidade nacional e internacional. O nosso atual não dialoga com nada, tanto que é alterado pelos que o defendem.


O esboço de programa do PT defende "a revogação da reforma trabalhista feita no governo Temer e a construção de uma nova legislação trabalhista". O que se pretende colocar no lugar? O desafio é como regular as relações de trabalho em um mundo que está em constante mudança, com novas categorias. Há cinco anos eu não me lembro de pedir comida por aplicativo.

Mas a flexibilidade na reforma não foi no sentido de um mundo que mudou? Não estou dizendo que nada do que está lá presta. Mas ela foi uma reforma inspirada na que a Espanha fez em 2012, e que agora foi revista. Pois os problemas que surgiram lá também estão surgindo aqui.

No fundo, ela enfraqueceu muito a negociação coletiva, os sindicatos e a Justiça do Trabalho. E dá muita força para a negociação individual. Em um cenário de recessão e alto desemprego tem como consequência, como estamos vendo agora, a queda do rendimento do trabalhador.

O que precisamos é de um arcabouço negociado, numa mesa de negociação com empresários, trabalhadores e setor público.

Não estou falando que vai voltar para a antiga CLT. Ninguém está dizendo isso. Mas de um novo arcabouço que dê conta desse mundo do trabalho que está mudando, com pessoas que ficaram de fora dessa legislação e absolutamente desprovidas de direitos.

E, ao mesmo tempo, que fortaleça a negociação coletiva e a organização dos trabalhadores.


Raio-X - Guilherme Mello, 39

É professor do Instituto de Economia e coordenador do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Econômico da Unicamp. Graduado em Ciências Econômicas pela PUC-SP, com mestrado em Economia Política e doutorado em Ciência Econômica pela Unicamp. Coordena o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas - Economia do PT

Erramos: o texto foi alterado

A reforma trabalhista foi uma mudança infraconstitucional, e não constitucional, como afirmava versão anterior deste texto, já corrigida.

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