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Bill Gates traz boas ideias contra pandemias, mas confia demais no capitalismo

No livro 'Como Evitar a Próxima Pandemia', bilionário diz que é preciso enfrentar desigualdade, mas não aborda suas causas

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São Paulo

A pandemia de coronavírus ainda não acabou, mas, segundo Bill Gates, a humanidade tem condições de fazer dela a última da história. Para isso, é necessário investir pesado em detecção precoce, fortalecer os sistemas de saúde pelo mundo e gastar alguns bilhões de dólares numa espécie de "corpo de bombeiros universal", que lidaria só com esse tema.

Os detalhes sobre esse plano estão em "Como Evitar a Próxima Pandemia", livro mais recente do cofundador da Microsoft, que chega ao Brasil pela Companhia das Letras.

Desta vez, Gates não se apresenta como um "ricaço cheio de opiniões", como fez na introdução de "Como Evitar um Desastre Climático" —lançado há pouco mais de um ano. Até mesmo porque seu trabalho com pandemias é de longa data.

Capa do livro 'Como evitar a Próxima Pandemia', de Bill Gates - Divulgação

Desde quando se afastou da Microsoft, em 2008, o bilionário passou a atuar como filantropo na Fundação Bill e Melinda Gates. Um dos focos da organização é investir em soluções para a Aids, doença que já matou 36 milhões de pessoas pelo mundo.

Mas não é só isso. Em 2015, Gates apresentou um TED Talk dizendo que a humanidade não estava preparada para uma próxima pandemia. Menos de cinco anos depois, o novo coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, causando mais de 6,3 milhões de mortes.

No livro, Gates diz que doenças infecciosas são uma espécie de obsessão para ele, a ponto de precisar se controlar para não falar sobre malária e vacinas durante eventos sociais.

Considerando o atual ponto de maturação tecnológica e a disponibilidade de recursos, ele defende que o mundo pode se livrar das pandemias para sempre —e o objetivo é aproveitar que a Covid-19 está fresca na memória das pessoas para botar o plano em ação.

"Surtos são inevitáveis, mas pandemias são opcionais." A famosa frase do epidemiologista Larry Brilliant está no cerne do argumento de Gates. Segundo ele, as doenças vão continuar se disseminando entre os seres humanos, mas não precisam se tornar desastres.

Para que isso aconteça, governos, cientistas, empresas e indivíduos precisam construir um sistema que conterá surtos inevitáveis. A detecção precoce é o primeiro ponto.

O mundo precisa melhorar a vigilância de doenças, o que envolve investir em sistemas de saúde robustos —principalmente nos países menos desenvolvidos. Outras soluções envolvem encontrar novos tratamentos; desenvolver vacinas; e vencer a disparidade sanitária entre países ricos e pobres.

A lógica é que algumas respostas já estão à mão, mas empresas, governos e sociedade civil precisam ajudar a dispersá-las pelo planeta. Para as soluções que ainda precisam ser desenvolvidas, a questão é canalizar esforços e recursos, investindo, por exemplo, em pesquisas sobre sistemas de diagnóstico e tratamentos inovadores.

Contudo, no coração do plano de Gates está uma organização que funcionaria como um corpo de bombeiros das pandemias. A esse grupo ele deu o sugestivo nome de Germ (Mobilização e Resposta Epidemiológica Global, na sigla em inglês).

A função do Germ seria ficar atento a possíveis surtos, mas também ajudar na contenção, criar sistemas para compartilhar informações, padronizar as recomendações políticas e pressionar países para implantar as medidas necessárias.

O grupo trabalharia sob os auspícios da OMS (Organização Mundial da Saúde) e seria formado por cientistas, diplomatas, epidemiologistas, especialistas de dados e em modelagem computacional.

Nas estimativas de Gates, o Germ precisaria de 3.000 funcionários em tempo integral a um custo de US$ 1 bilhão por ano. A equipe também ficará responsável por outra etapa essencial: os treinamentos periódicos.

Para que o plano dê certo, Bill Gates deixa claro a importância de governos e pesquisadores nesse processo. Por diversas vezes, o bilionário reconhece que o setor privado é incapaz de resolver todos os problemas do mundo.

No entanto, ele não nega seu entusiasmo com o modelo. "Como fundador de uma bem-sucedida empresa de tecnologia, acredito muito no poder do setor privado para impulsionar a inovação", escreve.

"Nem todas as pessoas gostam desse arranjo, mas o lucro costuma ser a força mais poderosa do mundo para criar produtos com rapidez", acrescenta.

No livro, Gates usa a pandemia de coronavírus para apontar erros e sugerir soluções. A disparidade entre países pobres e ricos é um ponto central.

É de esperar que um bilionário que foi recompensado por um modelo econômico evite criticá-lo. Mas estranha que, ao abordar desigualdades expostas durante a pandemia, ele não dedique alguns parágrafos para explicar o que pode estar por trás desses problemas.

Vencer esse desafio, aliás, é condição para evitar futuras crises, ele diz. Contudo, pouco se fala sobre a raiz das discrepâncias.

O cofundador da Microsoft lembra, por exemplo, que a pandemia foi pior para negros, latinos e indígenas. Que países pobres receberam menos vacinas e remédios. Mas até onde a lógica de mercado e a "força poderosa do lucro" que ele tanto valoriza não contribuíram historicamente para que isso viesse a acontecer?

Como Gates não aborda as causas do problema que critica, fica a impressão de que o objetivo é correr eternamente atrás de um prejuízo. Segundo o livro, fundações e governos de países ricos têm que se comprometer com a destinação de recursos para os locais que mais precisam. Em nenhum momento, enfrentar a raiz da desigualdade entra no plano.

No fim das contas, mesmo reconhecendo que a iniciativa privada não resolve tudo, o bilionário confia em excesso na lógica capitalista e filantrópica. O livro não parece suspeitar que esse sistema —que fez Bill Gates e outros bilionários ficarem mais ricos durante a pandemia— também pode ajudar a manter as desigualdades que agravaram os resultados trágicos da Covid.


Como Evitar a Próxima Pandemia

  • Autor Bill Gates
  • Editora Companhia das Letras
  • Preço R$ 74,90
  • Páginas 344
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