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Estoques estão lotados pelo mundo e viram problema diante da demanda fraca

Para driblar caos logístico da pandemia, empresas acumularam produtos que agora não conseguem vender

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São Paulo

O mundo está ficando abarrotado de produtos que as pessoas não querem ou não têm dinheiro para comprar. Após dois anos precisando lidar com o desabastecimento causado pela pandemia, companhias agora enfrentam outro problema: excesso de estoque.

O trauma da Covid —que desorganizou as cadeias de suprimentos globais— somado à expectativa de aumento nas vendas após a reabertura econômica fez com que algumas empresas corressem para acumular mercadorias. No entanto, o padrão de consumo mudou e, diante da escalada da inflação, a alta demanda simplesmente não se concretizou.

No Brasil, conforme a Folha apurou, os níveis de estoque não fogem muito do esperado. Já em países que sofreram mais fortemente com o caos logístico, o cenário é outro.

Centro de distribuição do Mercado Livre, em Cajamar (SP); empresa deve expandir malha logística - Eduardo Knapp/Folhapress

Dados da FactSet compilados pelo jornal japonês Nikkei mostram que os valores de produtos estocados no mundo atingiram um nível nunca antes visto.

Segundo o levantamento, o estoque de 2.349 companhias globais de manufatura chegou a um valor recorde de US$ 1,87 trilhão (R$ 10 trilhões) no final de março, uma diferença de US$ 97 bilhões (R$ 523 bilhões) em relação ao trimestre anterior.

Esse seria o patamar mais alto dos últimos dez anos, que é quando os dados começaram a ser disponibilizados.

Outro levantamento, feito pela Bloomberg, mostra que algumas das maiores varejistas dos Estados Unidos —como Walmart, Home Depot e Target— têm quase US$ 45 bilhões (R$ 243 bilhões) em produtos em excesso. O valor representa um aumento de 26% em relação ao ano passado.

Em maio, os estoques empresariais nos Estados Unidos aumentaram com força, superando o crescimento nas vendas. Segundo o Departamento de Comércio americano, foi registrado um avanço de 17,7% em relação ao mesmo período de 2021.

A abundância de mercadorias tem inclusive prejudicado os lucros. Se para algumas varejistas a questão é pagar mais por armazenamento, para outras o problema é descobrir uma forma de vender —o que geralmente significa baixar os preços.

O cenário é bem diferente do visto há pouco mais de um ano, quando alguns países sofreram com a escassez de ampla variedade de bens, de roupas a eletrônicos.

Nos EUA, por exemplo, após um período de poucas vendas nos primeiros meses de pandemia, o auxílio financeiro do governo estimulou as compras, a ponto de algumas empresas de comércio eletrônico terem dificuldades de atender à avalanche de pedidos.

A alta demanda, porém, coincidiu com as interrupções logísticas. Como resultado, as prateleiras chegaram a ficar vazias em determinado momento da crise sanitária.

O temor de uma nova escassez fez com que algumas varejistas aumentassem seus pedidos em meados do ano passado, como forma de se antecipar a eventuais pioras nos transportes e conseguir suprir a demanda. Mas o contexto mudou.

Embora as cadeias de suprimento ainda permaneçam complicadas, a realidade de consumo é outra. Em maio, por exemplo, as vendas no varejo dos EUA caíram, refletindo, entre outros problemas, a mudança no perfil de gastos —que tende a migrar do consumo de bens para o de serviços com o afrouxamento das restrições sanitárias.

Ao que tudo indica, as vendas ainda devem permanecer fracas, uma vez que o Fed (Federal Reserve, o banco central americano) vem elevando as taxas de juros como forma de esfriar a demanda e reduzir a mais alta inflação dos últimos 40 anos.

É diante desse quadro que o excesso de mercadorias se torna um problema. Segundo levantamento da Bloomberg, a Costco, gigante de supermercados norte-americana, teve um salto de 26% nos estoques, ao qual atribui à decisão de repor as mercadorias após a alta demanda do ano passado e se prevenir contra pioras na cadeia.

Já a rede de lojas de departamentos Macy’s viu esse nível subir 17%, enquanto o Walmart, 36%.

Mas o problema não fica restrito aos EUA. Com a inflação se espalhando pelo mundo, empresas de outros países também estão com produtos demais para vender. De acordo com dados da FactSet, a sul-coreana Samsung viu seu estoque subir para US$ 39,2 bilhões (R$ 211 bilhões) em março, um aumento de 13% em relação ao fim do ano passado.

Em meados de junho, o portal de tecnologia sul-coreano The Elec mostrou que a companhia tinha quase 50 milhões de smartphones parados em estoques de distribuidores.

A demanda por novos aparelhos é menor do que o esperado, o que envolve fatores tão diversos quanto as restrições chinesas para conter a Covid-19, a guerra da Ucrânia e o aumento dos preços das matérias-primas.

A baixa demanda por produtos eletroeletrônicos também fez a Samsung interromper temporariamente a compra de painéis LCD usados na produção de televisores.

Estoques em excesso podem ser mau sinal

Num cenário de mercadoria em excesso, a constatação imediata é que existe um descompasso entre demanda e oferta. No entanto, também pode ser indicativo de que uma desaceleração econômica está se aproximando.

Embora o contexto econômico mundo afora já aponte para um risco concreto de recessão global, os excessos de estoques contribuem para esse resultado.

A exemplo do que a Samsung fez com os painéis LCD, outras empresas também serão obrigadas a frear suas produções —e um ajuste geral de manufatura pode gerar mais desaceleração.

Brasil sofreu menos com a escassez e também com o excesso

O Brasil também sentiu os efeitos do caos logístico da pandemia, mas com uma intensidade menor do que em outros países. Atualmente, se há algum desequilíbrio nos estoques, ele acontece no sentido da escassez —e apenas em alguns setores.

Segundo o consultor em varejo Alberto Serrentino, da Varese Retail, o cenário brasileiro é de razoável estabilidade em relação ao abastecimento de estoques.

Na avaliação dele, o fato de o Brasil ter uma economia verticalizada, diversificada e pouco internacionalizada faz com que o país sofra menos com as rupturas na cadeia de abastecimento.

"Aquilo que às vezes é uma fragilidade nossa, de ser uma economia muito fechada e até um pouco ineficiente, em situações como essas se tornam grandes fortalezas", afirma.

Embora o Brasil tenha passado por alguns gargalos de insumo, ele lembra que não houve um desabastecimento crônico como ocorreu nos Estados Unidos. "Os níveis de ruptura nas lojas [americanas] foram assustadores", diz.

A Magalu, por exemplo, uma das maiores varejistas do país, diz que está com níveis de estoque dentro da normalidade. De acordo com Vanessa Rossini, gerente de relações com investidores da companhia, os resultados do primeiro trimestre de 2022 mostram que os níveis de estoque foram ajustados, com redução do saldo em mais de R$ 1 bilhão comparado ao fechamento de 2021.

"Nosso ajuste de estoque vem do fim do ano, o que nos coloca em uma posição bastante confortável", diz.

Segundo ela, a companhia se antecipou ao risco de desabastecimento da pandemia e não teve dificuldades com os produtos. "Fizemos não só uma preparação do estoque, mas também em logística, tecnologia", afirma.

​Na indústria, alguns segmentos relataram nível elevado de estoque, como é o caso dos automóveis. Segundo a Anfavea (associação das montadoras), embora o fornecimento de peças ainda esteja irregular, o setor começou o mês de julho com o maior nível de estoque dos últimos dois anos.

Contudo, a entidade diz que a situação não ocorre por falta de consumidores, mas devido a uma alta pontual na produção.

A última sondagem industrial feita pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), em maio deste ano, mostra uma pequena redução nos estoques em relação ao mês anterior. O índice que acompanha a evolução ficou em 49,7 pontos —valores acima dos 50 pontos indicam crescimento dos estoques, e abaixo, queda.

Observando a satisfação do setor, o levantamento indica que o nível está um pouco abaixo do planejado pelos empresários.

Algumas indústrias específicas têm trabalhado com estoques abaixo do desejado, como é o caso da farmacêutica.

Rafael Cagnin, economista do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), lembra que houve um momento de escassez nos estoques de produtos finais da indústria, principalmente na virada de 2020 para 2021. "De lá para cá, demos uma amenizada nesse quadro geral", afirma.

No total da indústria, ele diz, o cenário é de relativa estabilidade, com algumas vulnerabilidades setoriais. "Os indicadores estão muito próximos da linha de equilíbrio, ou seja, não há nenhum processo de grande ampliação de estoques de produtos finais, o que poderia indicar um desalinhamento muito forte entre demanda e produção", diz.

"O que há são empresas trabalhando com níveis muito justos de estoques, seja por deficiência de obtenção de algum insumo para produzir mais ou porque o nível de atividade geral está meio parado", acrescenta.

Erramos: o texto foi alterado

O valor de US$ 97 bilhões corresponde a R$ 523 bilhões, e não R$ 5,2 trilhões, como dito em versão anterior.

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