Inflação argentina é como um trem desenfreado, diz economista

Para Fausto Spotorno, medidas de congelamento e controle de preços não funcionam

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Buenos Aires

A Argentina vive, novamente, uma crise econômica. Na última semana, o cenário foi agravado em meio a protestos de movimentos sociais e ruralistas. Consultorias já projetam que a inflação pode chegar a 90% até o fim do ano.

"É como aqueles trens que saem do controle a uma velocidade normal, mas acabam acelerando num nível cada vez mais rápido", diz, em entrevista à Folha, o economista e consultor Fausto Spotorno, 47.

O economista argentino Fausto Spotorno - Divulgação

Por outro lado, ele é cético quanto a um risco de desabastecimento, dado o papel do país como produtor de alimentos. O problema, avalia, não deve atingir itens de primeira necessidade.

Sobre a relação do país vizinho com o Brasil, Spotorno avalia que ao longo da última década a vontade política de se trabalhar junto foi se perdendo.

"É certo que, no âmbito bilateral, não nos favoreceu a dobradinha antagônica Fernández-Bolsonaro. Mas também tivemos vários anos de PT com kirchnerismo que tampouco revigoraram o Mercosul", afirma.

O que significará para a economia argentina que a inflação chegue a 90% no final do ano? Uma inflação de 90% como estamos prevendo é um outro tipo de inflação, comparada a outros países da região. É como aqueles trens que saem do controle a uma velocidade normal, mas acabam acelerando num nível cada vez mais rápido. Isso fará com que seja cada vez mais difícil pará-lo.

Este fato, combinado com a debilidade política enorme do atual governo e da estrutura de ministérios "picadinhos" (com a administração da economia distribuída em várias pastas), faz com que ninguém tenha a força política suficiente para frear esse problema. Isso obviamente terá impacto na fuga de capitais, afastamento ainda maior do investimento estrangeiro, além do agravamento da pobreza.

A Argentina costuma recorrer muito ao controle de preços ou ao congelamento. Por que se insiste numa política que é tão criticada? Há possibilidade de funcionar nesse caso? Nenhuma. Congelamento e controle de preços nunca funcionaram na história da Argentina ou da humanidade. Ela promove um alívio passageiro, mas não ataca o problema real. No caso dessa disparada da inflação, nós já vínhamos de um processo inflacionário anterior à pandemia do coronavírus, mas que foi agravado pela alta emissão monetária que o governo promoveu para as políticas de contenção do impacto das medidas sanitárias na economia popular.

As medidas que conhecemos que podem parar a inflação existem, mas são lentas e, em geral, pouco populares, envolvem ajustes e responsabilidade fiscal. São medidas que têm um alto custo político que poucos têm a coragem de abraçar.

A nova ministra da economia, Silvina Batakis, prometeu políticas moderadas, mas acaba de tomar medidas polêmicas, como apertar ainda mais o cerco ao dólar com o aumento dos impostos para compras no exterior. Como a avalia? Uma coisa é o que você diz quando assume, outra quando começa de fato a administrar a economia. Suas primeiras declarações tinham a intenção de acalmar os ânimos do mercado. Mas essa primeira medida medida já demonstra que não há uma preocupação tão grande com que a diferença que há entre o dólar oficial e o "blue" [paralelo] como a que há em impedir que os dólares saiam do país.

Tão complicado quanto resolver a inflação é conter o "blue" quando dispara assim, não? A disparidade entre os tipos de dólar é fruto de um ciclo vicioso. Quando se tem uma alta inflação, quem compra produtos com antecipação para vender ou para usar na indústria precisa de uma referência de como estarão os preços lá adiante e por quanto terá de vendê-los para não ter perdas. Na falta de outra referência, essa é o dólar paralelo. Por isso que a cada disparada do "blue", há remarcações.

A vice-presidente, Cristina Kirchner, defende que a emissão monetária não provoca mais inflação. Há alguma coerência nisso? Não, nenhuma. Em nenhuma hipótese a emissão desenfreada não vai causar o aumento da inflação. Pode-se combater isso com políticas de absorção do dinheiro emitido por meio de taxas ou de políticas de revitalização da economia. Mas isso não está acontecendo. Há excesso de dinheiro no mercado, por isso há inflação.

Acredita que possa haver desabastecimento? Pode haver, mas nisso a Argentina tem vantagens com relação a países como a Venezuela, que produz praticamente só petróleo e importa muitos bens de consumo em geral. A Argentina é produtora de alimentos. Portanto, haverá talvez falta de artigos que não são de primeira necessidade, como uísque, cortes determinados de peixe, itens assim. Temos um problema sério com o café, que a Argentina ainda importa muito. Mas um cenário de prateleiras vazias por impossibilidade de importação, não creio que seja possível. A Argentina é um país que tem um perfil que permite ter uma economia mais fechada.

As eleições e a situação econômica brasileiras podem impactar a economia argentina? Sempre há impacto do que ocorre no Brasil na economia argentina. O que vejo que vem se perdendo nos últimos dez anos é vontade política de trabalhar de modo mais coordenado entre os dois países e dentro do bloco. Um Mercosul mais flexibilizado, mas com política interna comum, nos fortaleceria a todos. Mas não se vê um ânimo de integração baseado no pragmatismo, e sim em orientações ideológicas.

Não defendo, tampouco, modelos como o do Chile, de abertura total para tratados de livre-comércio, porque sempre dependerá dos governos do momento. Tampouco o de desmantelar o bloco. Soltos, iremos pior. No caso dos países do Mercosul, faz sentido o bloco aduaneiro e a atuação em comum, mas não vejo problema em que se flexibilize, como o Uruguai parece já estar fazendo por conta própria [o país está avançando num tratado de livre-comércio com a China, à revelia dos outros integrantes do bloco].

É certo que, no âmbito bilateral, não nos favoreceu a dobradinha antagônica Fernández-Bolsonaro. Mas também tivemos vários anos de PT com kirchnerismo que tampouco revigoraram o Mercosul. Falta sentar-se com mais responsabilidade e um objetivo de formular políticas em comum para além dos próximos dez anos.


Raio-X | Fausto Spotorno, 47

Economista e consultor, é diretor da escola de negócios da Uade (Universidade Argentina da Empresa) e do Centro de Estudos Econômicos da OJF (Orlando J. Ferreres & Asociados).

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