Ampliação de isenção a pastores extrapola competência da Receita, diz sindicato de auditores

Sindifisco avalia questionar judicialmente norma que elencou critérios mais flexíveis para benefício tributário

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Brasília

O Sindifisco Nacional (Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal) avalia questionar judicialmente o ato do secretário especial do órgão, Julio Cesar Vieira Gomes, que ampliou o alcance da isenção de contribuição previdenciária sobre a remuneração de pastores.

A medida, que foi citada publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e beneficia aliados do chefe do Executivo, "extrapola a competência da Receita Federal para atos normativos", segundo avaliação do Sindifisco.

"Ao reduzir as condicionantes para o que se considera remuneração para fins de incidência previdenciária, a Receita Federal faz com que mais remunerações se considerem isentas. Uma ação que prejudica tanto a arrecadação presente quanto créditos tributários já constituídos e produz efeitos danosos nas contas da seguridade social", diz o sindicato dos auditores.

O presidente Jair Bolsonaro participa de culto na Câmara dos Deputados, ao lado de deputados da Frente Parlamentar Evangélica - Pedro Ladeira - 03.ago.2022/Folhapress

O ato de Gomes foi publicado em 1º de agosto, a duas semanas do início da campanha eleitoral e no momento em que Bolsonaro busca consolidar o apoio dos evangélicos a sua tentativa de reeleição.

O secretário é próximo do senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente, e tem interlocução direta com o chefe do Executivo. Na terça-feira (16), Bolsonaro declarou que a medida atende a um pedido feito pelos pastores para pôr fim ao que eles chamam de "perseguição" da Receita Federal.

Na prática, a medida amplia os casos de isenção da prebenda (como é conhecida a remuneração dos pastores e das lideranças religiosas) e enterra de vez os processos de fiscalização ainda em curso.

Para o presidente do Sindifisco, Isac Falcão, a norma foi publicada "em momento eleitoral", sem discussão com a sociedade e sem respeitar a competência do Congresso Nacional, que é o responsável pela aprovação das leis.

"O secretário assina um ato modificando o sentido da lei. Ele colocou vários critérios possíveis de diferenciação da remuneração para dizer que não se enquadra [como parcela tributável]", afirmou.

"O Sindifisco está estudando os impactos dessa medida e também formas para que haja o controle jurisdicional", disse Falcão.

A Receita Federal diz que o ato consolida um "entendimento já vigente", embora reconheça que a "diversidade de documentos" sobre o tema "acabava, até então, por gerar divergências internas".

"A consolidação do entendimento num único normativo permitiu otimizar a publicidade, tanto para os auditores fiscais quanto para os contribuintes, trazendo ganhos de segurança jurídica, redução de litígios e de conformidade", afirma o Fisco.

Técnicos ouvidos reservadamente pela reportagem, porém, também têm a avaliação de que a norma administrativa amplia o alcance da isenção aos pastores.

Na lista pública de devedores inscritos na Dívida Ativa da União, as entidades religiosas mantêm uma débito de R$ 1,02 bilhão, dos quais R$ 951 milhões são relacionados à Previdência. A Receita, por sua vez, disse não ter um levantamento sobre fiscalizações em âmbito administrativo.

Segundo Falcão, o ato de Gomes abre espaço para que todos esses créditos sejam desconstituídos, isto é, extintos, livrando os devedores de qualquer cobrança.

O alvo da controvérsia é a prebenda, como é chamada a remuneração paga ao pastor ou líder do ministério religioso por seus serviços.

A lei isenta o valor do recolhimento de contribuição previdenciária, desde que ele tenha relação com a atividade religiosa e não dependa da natureza ou da quantidade de trabalho.

A Receita, porém, detectou nos últimos anos que algumas igrejas usavam a prebenda para driblar a fiscalização e distribuir uma espécie de participação nos lucros aos pastores que reuniam os maiores grupos de fiéis (beneficiando lideranças de templos em grandes cidades ou bairros, por exemplo) ou as maiores arrecadações de dízimo.

O Fisco aplicou multas milionárias e exigiu o pagamento da alíquota previdenciária de 20% sobre os valores pagos a pastores, dirigentes e lideranças religiosas. O entendimento dos auditores era o de que a isenção não se aplicava a mecanismos de remuneração variável.

A partir daí, a busca pelo perdão tributário e pela flexibilização das regras passou a ser uma pauta prioritária da bancada evangélica no Congresso Nacional.

Em 2015, uma primeira lei estipulou que valores diferenciados, pagos em dinheiro ou como ajuda de custo de moradia, transporte e formação educacional, também seriam isentos de tributação.

O Fisco reagiu exigindo recibos desses gastos e multou quem não conseguiu comprovar a natureza das despesas. A Receita ainda adotou entendimento de que a nova lei não retroagia, ou seja, as multas expedidas antes de sua publicação continuavam valendo.

Em 2020, Bolsonaro sancionou uma lei que previa expressamente a retroatividade da isenção previdenciária mais ampla sobre a prebenda, aprovada cinco anos antes. A intenção era derrubar as multas que ainda pairavam sobre pastores aliados.

No entanto, a controvérsia no âmbito da fiscalização continuou, uma vez que, segundo fontes do governo, os auditores não viram nenhuma mudança no alcance das isenções.

Em setembro de 2021, por exemplo, uma solução de consulta publicada pela Coordenação-Geral de Tributação afirmou que, caso o pagamento pela instituição se dê com características inerentes a remuneração por serviços prestados pelo ministro de confissão religiosa, o valor recebido deveria ser considerado na base de cálculo da contribuição previdenciária.

O mesmo entendimento valeria para valores pagos "de forma excedente ao necessário para fins de subsistência da pessoa".

O ato de Gomes, por sua vez, diz que o pagamento de valores diferenciados, no montante ou na forma, "não caracteriza esses valores como remuneração sujeita à contribuição". No texto, são citados como fatores de diferenciação "antiguidade na instituição, grau de instrução, irredutibilidade dos valores, número de dependentes, posição hierárquica e local do domicílio".

A norma também diz que só será considerada remuneração tributável a parcela paga em condições "comprovadamente" relacionadas à natureza e à quantidade do trabalho executado.

Por ser assinado pelo secretário especial, o documento se sobrepõe a qualquer solução de consulta divergente sobre o tema.

A inserção do local do domicílio é apontada por técnicos críticos da medida como um fator chave para os pastores, uma vez que igrejas localizadas em grandes cidades ou bairros nobres costumam ter melhores resultados em termos de fiéis e arrecadação. A posição hierárquica também pode abrir brechas para repasses mais significativos às lideranças religiosas, que ficarão livres de tributação.

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