Descrição de chapéu Auxílio Brasil

Apagão social em proposta de Orçamento de 2023 desafia vencedor das eleições

Corte de recursos em projeto do governo torna incerto futuro de políticas para mais pobres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

A proposta de Orçamento de 2023 ameaça criar um apagão em políticas sociais no país e impõe um desafio significativo ao presidente eleito e ao Congresso Nacional, que precisarão atuar em conjunto para recompor esses gastos até o fim de dezembro deste ano.

O prazo é exíguo para evitar que, em janeiro, 20,6 milhões de famílias tenham um corte de R$ 200 no valor do Auxílio Brasil, 8.400 centros de assistência social reduzam seus atendimentos e 125 mil obras de casas populares sejam interrompidas —outras 15 mil já foram adiadas.

O atendimento a 21 milhões de famílias por meio do Farmácia Popular, que distribui medicamentos de forma gratuita ou subsidiada, também está ameaçado e pode parar a partir de maio se nada for feito.

Foto de criança no Morro do Piolho, em São Paulo, que foi atingido por um incêndio em julho. Moradores foram ajudados com marmitas distribuídas pela ONG Unidos pelo Bem. - 22.07.2022-Ronny Santos/Folhapress

Os programas citados são apenas alguns exemplos. A peça orçamentária enviada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) em 31 de agosto trouxe cortes significativos em diversas ações sociais na saúde, na habitação e na assistência social para cumprir o teto de gastos (regra que limita as despesas federais).

Enquanto o futuro dessas políticas públicas está incerto, os parlamentares contam com uma reserva de R$ 19,4 bilhões para as emendas de relator —recursos usados como moeda de troca em negociações políticas, com pouca transparência.

Os congressistas até poderiam usar as emendas de relator para contemplar as ações que sofreram cortes, mas o histórico recente dessas emendas mostra certa preferência pela aquisição de tratores, equipamentos, financiamento de obras e atendimentos de saúde em seus redutos eleitorais.

A situação do Orçamento de 2023 despertou críticas de especialistas e tem sido explorada por adversários de Bolsonaro, que disputa a reeleição, na campanha eleitoral.

Economistas ligados à campanha do PT falam em "abismo social" ou "morte súbita" de programas na virada do ano. Integrantes do governo tentam rebater os ataques com a promessa de reformulação do Orçamento após as eleições e afirmam que a versão atual é "uma ficção".

A resolução do impasse nos programas sociais vai exigir do presidente eleito e do Congresso uma negociação ágil para flexibilizar o teto de gastos e redesenhar o Orçamento.

Retirada de previsão orçamentária é como dizer 'se vira aí' para os mais pobres, afirma economista

É disso que depende, por exemplo, o funcionamento das unidades do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que atuam na gestão do Cadastro Único de benefícios sociais.

Trata-se de uma rede com ampla capilaridade: segundo o Censo Suas (Sistema Único de Assistência Social), o Brasil tinha 8.400 centros espalhados em 99% dos municípios no ano de 2020.

Como mostrou a Folha, os recursos para a manutenção dessa rede, que é a porta de entrada para benefícios sociais como o Auxílio Brasil, tiveram um corte de 95% das verbas federais para 2023.

O presidente do Congemas (Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social), Elias Oliveira, afirma que as ações de assistência são financiadas em conjunto por União, estados e municípios. Como os repasses federais têm caído ano a ano, isso obriga as prefeituras a investir valores maiores ou reduzir a atuação —prejudicando visitas domiciliares ou ações de acolhimento a jovens e mulheres em situação vulnerável.

"Não adianta essa mãe, essa família receber R$ 600 [do Auxílio Brasil] se não tem retaguarda, [não puder] mandar o filho para um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, se eu não puder oferecer a ela um curso de qualificação", diz Oliveira.

"A ausência de recurso quebra toda essa rede. Os R$ 600 até permitem que ela compre o alimento, ou parte dele pelo menos, mas ela não tem a rede de proteção que é complementar."

Em 2015, segundo o Congemas, a verba federal para auxiliar no financiamento dos Cras/Creas era de R$ 3,4 bilhões, em valores da época. Em 2022, a cifra caiu a R$ 1,1 bilhão. Para 2023, a reserva inicial é de meros R$ 48,3 milhões.

"Para a família muito pobre, essa rede é a primeira entrada que ela tem para que o Estado entenda quais são suas necessidades. Dali se consegue encaminhar outras ações de saúde, educação, creche, tudo que uma família muito vulnerável precise", explica o economista Sergio Firpo, professor do Insper e colunista da Folha.

"Na hora em que se tira a previsão orçamentária, é como se estivesse dizendo para essas famílias muito pobres: 'Se vira aí'", acrescenta.

Obra do Casa Verde e Amarela contratada em 2016 ainda não saiu do papel

No programa habitacional Casa Verde e Amarela, um corte também de 95% levou o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) a congelar 15 mil obras que seriam retomadas ainda este ano. Outras 125 mil serão suspensas a partir de janeiro caso não haja recomposição do Orçamento.

Alessandra Santos, representante do Movimento Sem Terra Leste 1, aguarda há oito anos o avanço do residencial Jerônimo Alves, batizado com o nome de seu pai, um dos que fundaram a organização há 35 anos.

O empreendimento faz parte de um projeto de três residenciais na zona leste de São Paulo, com capacidade para receber 700 famílias. A obra foi contratada em 2016, mas até hoje não saiu do papel por falta de dinheiro.

"Essa demora é um problema muito grande. Muitas famílias vivem de favor, na casa do pai, de tia, outras pagam aluguel, e com a pandemia muita gente acabou ficando desalojada, mesmo", afirma Santos, que esperava ver o residencial contemplado no próximo ano.

"Temos famílias que tiveram que ocupar espaços na rua porque perderam a renda. Pessoas tiveram que ir embora de São Paulo, precisaram ir para outras cidades tentar a vida porque não conseguiram se manter aqui. Quase cem famílias saíram do projeto por causa desses oito anos", diz.

Saúde perde 42% das verbas discrionárias

Na saúde, a situação também é delicada. Bolsonaro encaminhou a proposta de Orçamento com uma previsão de corte de 42% nas verbas discricionárias do Ministério da Saúde. Esse tipo de recurso é usado para comprar materiais, equipamentos e auxiliar na prestação de serviços à população.

O Farmácia Popular sofreu uma redução até maior, de 59%. Criado em 2004, o programa distribui medicamentos básicos gratuitamente ou com desconto de até 90% para hipertensão, diabetes, asma, entre outras doenças, por meio de farmácias privadas conveniadas.

A iniciativa é vista como central por gestores do SUS (Sistema Único de Saúde) para o controle de doenças prevalentes. Mas a verba caiu de R$ 2,48 bilhões neste ano para R$ 1 bilhão em 2023. Reduzir as entregas pode ampliar a demanda por atendimentos hospitalares e internações.

A proposta orçamentária também ameaça a manutenção do Mais Médicos e a consolidação do programa criado para sucedê-lo, o Médicos pelo Brasil. A verba reservada para estes programas de formação e descentralização de profissionais de saúde pode cair de R$ 2,96 bilhões neste ano para R$ 1,46 bilhão em 2023.

A professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Ligia Bahia, especialista em saúde coletiva, ressalta que o Mais Médicos hoje sustenta 18.240 vagas em 4.058 municípios de todo o país, além de 34 distritos sanitários especiais indígenas.

"Com o corte de metade do orçamento, haverá redução de médicos para essas localidades mais distantes ou haverá complementação de recursos?", questiona.

Bolsonaro ainda propôs reduzir 58% do orçamento do DataSUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) em 2023, o que pode ampliar os riscos de novos vazamentos de dados sensíveis da população.

Auxiliares do ministro Marcelo Queiroga dizem que as verbas reservadas à Saúde em 2023 são suficientes para garantir o funcionamento das principais ações por apenas quatro meses.

Esses interlocutores também afirmam que foram pegos de surpresa pelo tamanho dos cortes e que, por isso, ainda não fizeram um diagnóstico preciso de quais ações podem ser interrompidas ou reduzidas no próximo ano.

A expectativa da pasta é que parte do Orçamento seja recomposta com verbas de emendas do relator. Essa saída, porém, exige negociação com o Congresso Nacional. Pressionado pela disputa eleitoral, Bolsonaro afirma que irá recompor o orçamento da Saúde, mas ainda não apontou uma solução concreta.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.