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Série da Netflix sobre GameStop conta como lobos de Wall Street podem sangrar

Documentário retrata rara vingança de pessoas comuns contra o capital

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São Paulo

Se você faz parte da maioria que despreza o mercado de ações, provavelmente não deu bola para a notícia em janeiro de 2021 sobre o alvoroço provocado nos Estados Unidos pela disparada das ações de uma loja de jogos de videogame à beira da falência.

Não sinta culpa se apenas o nome GameStop ficou na sua memória e todo resto soou como mais uma chatice do noticiário de finanças. Talvez não tenha ficado claro que aquela era, na verdade, uma história de vingança de pessoas comuns contra bilionários que ditam as regras do jogo no capitalismo e, querendo ou não, causam muito sofrimento.

Recém-lançada pela Netflix, a minissérie documental "GameStop contra Wall Street" conta em três capítulos como investidores amadores colocaram em prática um plano arriscado para causar estragos no mercado de ações e como alguns ganharam muito dinheiro com isso.

Pedestre passa por uma loja da GameStop em Manhattan, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos
Pedestre passa por uma loja da GameStop em Manhattan, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos - Carlo Allegri - 29.jan.2021/Reuters

Antes de explicar o jogo de xadrez que resultou no improvável caso GameStop, o documentário dirigido por Theo Love dá voz a pequenos investidores para que eles expliquem o sentimento que os levou a caçar lobos em Wall Street, como é chamado o distrito financeiro e endereço da Bolsa de Valores de Nova York.

Entre eles está Diana Wilson, que viu seu pai perder o emprego e a casa na crise das hipotecas em 2008.

"Eu tenho essa fotografia na memória: enquanto as pessoas e a imprensa estavam lá na rua, em Wall Street, aqueles filhos da puta estavam na varanda estourando champanhe, rindo e tirando fotografias das pessoas que perderam suas casas na crise", diz Wilson, em um dos trechos da sua entrevista.

A cena narrada por Wilson ocorreu em 2011, durante os protestos contra os lucros do mercado financeiro diante da crescente desigualdade. O movimento, conhecido como Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street), não era exatamente uma resposta à crise de 2008 e as pessoas na varanda eram apenas clientes de um restaurante nas proximidades.

Nada disso importa. A imagem segue no Youtube como um retrato de ricos debochando de trabalhadores que dependem do próximo contracheque para não serem despejados dos seus apartamentos minúsculos.

"Quando olhamos as crises financeiras, quem são os grandes perdedores?", questiona Vicki Bogan, professora de economia da Cornell University, em outra parte do documentário. "Pense na crise das hipotecas de 2008. [Os perdedores] foram os donos de imóveis", diz. "Os bancos podem ter perdas por algum tempo, mas depois se recuperam. Então veio a pandemia e as pessoas perderam outra vez."

E se existem símbolos das artimanhas dos donos do dinheiro para lucrar em qualquer situação, mesmo em uma crise que tirou o trabalho e a casa de milhões, os hedge funds (fundos de cobertura) certamente estão entre eles.

Nesse tipo de negócio, gestores têm liberdade para fazer aplicações muito diversificadas e também arriscadas. É uma maneira de compensar perdas em momentos de turbulências econômicas. Uma das estratégias desses fundos é a venda a descoberto ou short selling.

Em uma venda a descoberto, o gestor aluga uma ação que ele acredita que irá perder valor e a vende imediatamente para comprá-la novamente por um preço mais baixo e devolvê-la ao proprietário quando o prazo do empréstimo termina. Diz-se, no jargão do mercado, que esse gestor "está vendido" em uma determinada ação.

Jason Mudrick, fundador do hedge fund Mudrick Capital, ilustra didaticamente no filme como a operação pode ser lucrativa. "Eu alugo a sua ação da IBM por US$ 10 e a vendo [pelo mesmo preço]. No mês que vem, ela vale US$ 8. Eu compro essa ação da IBM e te devolvo. Para você está tudo igual. Você tem a sua ação da IBM. Mas eu gastei só US$ 8", explica. Ou seja, ele ganhou US$ 2.

Fundos de cobertura despertam a fúria das pessoas simplesmente porque trazem lucros a investidores que apostam na queda e, eventualmente, na falência de um negócio. Alguns ganharam milhões de dólares em 2008, quando 170 mil negócios faliram nos Estados Unidos e 2,3 milhões de famílias perderam suas casas.

Diante da crescente oferta de jogos online, a GameStop era uma típica condenada à falência e diversos fundos mantinham posições vendidas em ações da empresa, cujo negócio era a compra e revenda de jogos usados.

No mecanismo cruel da venda a descoberto, a notícia de que um grande fundo está vendido em ações de uma determinada empresa tende a desvalorizar ainda mais o alvo da operação. É uma profecia autorrealizável.

Essa história parecia estar se repetindo com a GameStop, até que, na última semana de janeiro de 2021, milhares de pequenos investidores colocaram em prática a sua revanche contra Wall Street e começaram a comprar em massa as ações da loja e isso fez os preços saltarem.

Fundos de cobertura que apostaram contra a GameStop começaram a ter prejuízo, afinal, eles passaram a ter de pagar valores mais altos para devolver as ações emprestadas. Esses fundos, então, tentaram diminuir suas perdas comprando rapidamente essas ações antes que elas ficassem ainda mais caras. Isso fez os preços subirem ainda mais. O valor da GameStop disparou cerca de 700% em uma semana.

A aceleração dos preços de ações muito acima dos fundamentos de mercado em um pequeno intervalo é chamada de short squeeze, literalmente, um aperto curto. É o pesadelo de fundos que operam vendidos.

"É como apanhar moedas em uma linha de trem: funciona até você ser atropelado", disse Mudrick, em uma das muitas frases de efeito que gestores recitam no documentário.

Mas como é possível que pessoas comuns tenham percebido uma brecha para castigar o mercado em uma batalha repetidamente descrita pela imprensa como Davi contra Golias? Bem, nesta reedição do duelo bíblico, celulares, aplicativos e redes sociais foram fundamentais.

Investidores do varejo estão em larga desvantagem se comparados aos investidores institucionais, que possuem assessorias equipadas com tecnologia capaz de acompanhar em tempo real as transações financeiras ao redor do mundo.

Essa impotência frente ao sistema funcionou como catalisador de membros para um fórum de investidores amadores chamado WallStreetBets na rede social Reddit, onde os usuários são anônimos e se comunicam basicamente por meio de memes. Um ambiente perfeito para semear o caos.

Os participantes ganham notoriedade no WallStreetBets por apostas arriscadas no mercado de ações que quase sempre dão prejuízo.

Em meio à anarquia dessa comunidade, alguns poucos membros fizeram as contas e descobriram que um forte movimento de compras da GameStop poderia impor um short squeeze. A teoria foi postada na rede e a coisa pegou fogo de vez quando empreendedores de sucesso decidiram comprar ou ao menos mencionar o movimento. Lá estava o bilionário Elon Musk para jogar mais lenha na fogueira.

Musk tuitou para seus mais de 40 milhões de seguidores: "Gamestonk!!". Um trocadilho que junta o nome de uma empresa, no caso a GameStop, com uma variação da palavra stock (ação). O homem mais rico do mundo alertou milhões de que a GameStop estava bombando.

Esses pequenos investidores não teriam chance de turbinar os preços das ações rapidamente, porém, sem a ferramenta certa. A tecnologia necessária para isso havia surgido alguns anos antes, com a criação do aplicativo de corretagem Robinhood.

Gratuito e amigável a ponto de tornar a compra e a venda de ações tão simples como chamar um Uber ou postar uma foto no Instagram, o Robinhood traz no nome o seu propósito e foi idealizado na esteira da crise de 2008, como também contam no documentário Vlad Tenev e Baiju Bhatt, fundadores da empresa.

Usuários do Reddit munidos do Robinhood tinham as ferramentas e a disposição necessárias para, em grupo, apostarem tudo na GameStop e, assim, fazerem Wall Street sangrar. Fundos de cobertura perderam bilhões.

É claro que qualquer pessoa que não tenha passado os últimos dois anos em Marte sabe que esses investidores não venceram o capitalismo.

O freio no movimento especulativo ocorreu quando o Robinhood decidiu desabilitar o botão de compra, mas manteve liberado o botão de venda de ações. Isso forçou a aplicação da lei da oferta e da procura. Se ninguém pode comprar, mas todos podem vender, o preço cai.

Há muitas suspeitas sobre o que esteve por trás da decisão do Robinhood, mas órgãos reguladores aceitaram a explicação de que a especulação colocava em risco os usuários porque era impossível para a empresa realizar em curtíssimo prazo a operação financeira necessária para manter os pagamentos aos investidores. É mesmo um pouco difícil de engolir.

"GameStop contra Wall Street" não é um documentário chato sobre finanças, mas uma história de seres humanos envolvidos em um raro contragolpe no sistema. Pessoas comuns em uma batalha épica contra endinheirados que provaram, ao menos por um curto período, o seu próprio veneno.

GameStop Contra Wall Street (Eat the Rich: The GameStop Saga), EUA, 2022

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