Carreira pública tem desafio de conter fator político, mas qualificações ajudam

Capacitação técnica permite que profissionais disputem espaço mesmo em escalões onde predominam as nomeações políticas

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Imagem colorida mostra Fernanda, uma mulher de 39 anos, do tórax para cima. Ela está à direita, usando um blazer cinza sobre um vestido preto. No lado esquerdo, duas grandes portas, uma aberta, outra fechada.

Fernanda Sanches Martins, 39, no saguão do prédio da Prefeitura de São Paulo, na região central; ela entrou no serviço público no setor administrativo em 2003 e hoje é coordenadora de projetos Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Mudanças de governos e a consequente nomeação de várias centenas de pessoas para cargos públicos renovam os debates a respeito do que pesa para o desenvolvimento de uma carreira pública consistente.

Tanto para quem anseia uma vaga no Estado e presta concurso como para quem já é servidor e quer avançar de posto, competência, preparo e atualização são fundamentais, mas o desafio de conter o ímpeto das interferências políticas e romper a rigidez de algumas estruturas estatais existe e é debate entre quem pensa o profissional público do futuro no Brasil.

O início da terceira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com a nomeação de duas mulheres funcionárias de carreira como presidentes da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, evidencia a discussão.

À esquerda, Rita Serrano (esq.), nova presidente da Caixa Econômica Federal. Ela tem cabelo loiro até os ombros e veste uma blusa roxa. No lado direito está Tarciana Medeiros, primeira mulher a presidir o Banco do Brasil. Ela tem cabelo curto, preto, e veste uma casado verde sobre uma blusa preta.
Rita Serrano (esq.), nova presidente da Caixa Econômica Federal; Tarciana Medeiros, primeira mulher a presidir o Banco do Brasil - Elaine Menke/Câmara do Deputados e Divulgação/BB

Rita Serrano, 53, a quarta mulher a presidir a Caixa, é funcionária do banco há 33 anos. Ocupou diversos cargos ao longo de sua trajetória. Tarciana Medeiros, 44, entrou no Banco do Brasil em 2000, passando por várias posições. Em 2018, assumiu como executiva na diretoria de empréstimos e financiamentos do BB. É a primeira mulher a assumir a presidência da instituição.

Para Cibele Franzese, professora de graduação e pós-graduação em administração pública da FGV, o fato de as duas servidoras terem chegado ao cargo de liderança é salutar, mas isso não quer dizer que a escolha não tenha sido política.

"É uma agenda do governo de fortalecer questões de gênero, de ter mulheres em cargos de chefia e na liderança da empresa e ter pessoas de carreira, que conheçam a vida da própria empresa. Isso mostra um pouco que a gente não tem um sistema de alta direção em cargos públicos com uma seleção por competência. É muito a toque que acontece esse processo", diz a professora.

A questão de gênero no governo Lula ganhou mais força ainda com a indicação da jornalista Kariane Costa, 41, para a presidência da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). Há dez anos na estatal, a jornalista estava trabalhando como repórter de política.

Segundo dados do Atlas do Estado Brasileiro, as mulheres representam 59% dos funcionários públicos no país. Mas, em cargos de liderança, a maioria é de homens: 57%. E quanto maior o nível, menor a participação feminina.

A Constituição estabelece que os cargos de direção, chefia e assessoramento são de livre nomeação e exoneração. Segundo Franzese, a classe política tem uma agenda de compromisso eleitoral para cumprir, e é legítimo que eles possam nomear pessoas de sua confiança para fazer essa agenda acontecer. Porém, é necessário haver mudanças para que a escolha seja mais técnica.

Franzese também destaca que a pessoa já ingressa no serviço público com uma carreira traçada pela lei. "É pouco institucionalizado e muito engessado para quem quer planejar a sua carreira. A evolução funcional é de tabela salarial, porque a função não muda. É promovido e daqui 20, 30 anos, quando for aposentar, está fazendo a mesma coisa prevista na lei."

Fernanda Sanches Martins, 39, conseguiu fugir desse caminho. Ela entrou como servidora concursada da Prefeitura de São Paulo em abril de 2003, em uma função administrativa. Hoje, é coordenadora de projetos da prefeitura.

Ela foi se graduando de acordo com as oportunidades que apareceram ao longo de sua carreira no serviço público.

"Quando prestei o concurso, a função requisitava só ensino médio e algumas habilidades específicas. Mas eu senti muita falta de evoluir mesmo não sendo obrigatório na minha carreira, então, fui me formando ao longo desse período. Hoje tenho técnico de secretariado, sou bacharel de turismo e sou estudante de tecnologia da informação."

Para Paulo Modesto, professor de direito administrativo da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público, sempre haverá um componente político no cargo de confiança. É para isso que eles existem, "são a ponte entre o ator político e os atores técnicos", diz.

"Mas que esse componente político seja filtrado, com teste de competência, por uma certa proporção entre os cargos de confiança e os cargos efetivos. Que se evite uma colonização da política em relação à gestão pública é importante."

Segundo Franzese, faltam regras de avaliação que possam estimular o servidor e traçar uma carreira diferente da que lhe é dada.

É uma batalha histórica. Nós não chegamos ainda ao grau de profissionalização [da carreira do servidor] dos países desenvolvidos

Francisco Gaetani

Secretário de governo

"A gente não tem uma gestão de desempenho do servidor. Se não tem um dirigente que faça a gestão de desempenho, se o dirigente é um político que foi indicado e não olha para a cara do servidor o ano inteiro, como é que ele vai ser avaliado?"

Modesto vai além. Segundo ele, o sistema de carreira não é bom e o que respalda isso é a amplitude baixa das carreiras dentro do serviço público.

"Temos entre o primeiro e o último nível de remuneração poucos estratos. O servidor, rapidamente, com poucos anos de trabalho, já está no nível máximo da carreira, o que cria desincentivos à manutenção da eficiência, da dedicação ao serviço", diz o professor.

Outro fator que alimenta a discussão é o local onde o servidor está alocado, segundo o economista Francisco Gaetani, da Secretaria Extraordinária para a Transformação do Estado do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

"Se olhar para a Esplanada, verá um dominó de ministérios e a tendência é achar que é tudo igual, mas na verdade são muito heterogêneos. Tem ministérios mais profissionalizados e outros menos profissionalizados", diz Gaetani.

"Existem ministérios que têm um conjunto de cargos de confiança. No primeiro nível, é mais natural que seja gente de fora. No segundo nível, intermediário. No terceiro, que seja o pessoal da casa. Tem áreas que você traz gente de fora para todos os níveis e tem áreas onde o pessoal da casa ocupa todos os níveis."

O advogado Ricardo Marques, 52, passou pela mudança política na administração federal recentemente. Em julho de 2022, ela havia assumindo a Secretária de Energia Elétrica do Ministério de Minas e Energia. Mas, em pouco mais de seis meses, foi exonerado.

Ele entrou no serviço público em 1999, em cargo comissionado. Em 2005, foi nomeado servidor público na Agência Nacional de Energia Elétrica. "Demorei esse tempo para chegar onde cheguei. Passei por vários cargos, fui construindo a carreira aos poucos. Essa é a regra geral", diz.

"Para alcançar uma posição maior, tem que ter uma bagagem construída para você conseguir dar as respostas. Não é só conhecimento acadêmico ou técnico."

A coordenadora de projetos Fernanda Martins mostra que é possível alinhar esses conhecimentos para fortalecer a sua carreira dentro do serviço público. "Tive muitos obstáculos, coisas que até me fortaleceram, contribuíram, e hoje devolvo tudo isso que tive um pouco mais de dificuldade para me consolidar como experiência para a minha equipe."

Para o professor Paulo Modesto, duas medidas poderiam valorizar o preparo e a qualificação do servidor. Uma seria exigir nível superior para cargo de confiança, e outra que nunca se ultrapasse o limite máximo de 50% dos cargos de confiança em relação aos cargos efetivos.

"Há muito o que fazer, seja criando bloqueios ou inibições para a colonização política desses cargos. É importante que haja resistência contra o abuso, que haja memória dos órgãos públicos, que os servidores possam preservar a continuidade do serviço público."

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