Descrição de chapéu Banco Central

Banco Central e mercado estão chantageando o governo, diz Mantega

Ex-ministro afirma que agentes querem impor sua política fiscal a Lula

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Brasília

Na avaliação do ex-ministro da Fazenda e economista Guido Mantega, o Banco Central (BC) adotou a taxa básica de juros como instrumento de pressão para forçar a permanência de uma política fiscal arrochada, nos moldes impostos pelo teto de gastos, que o governo já avisou que vai descartar.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) percebeu o recado e está coberto de razão em reagir contra Roberto Campos Neto, afirma Mantega.

O ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, em jantar em homenagem ao advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas - Mathilde Missioneiro- 10.fev.23/Folhapress

A discórdia escalou após o comunicado divulgado em 1º de fevereiro pelo Copom (Comitê de Política Monetária). O texto, considerado hostil entre os apoiadores do presidente, destacou que "elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais que implicam sustentação da demanda" obrigavam a instituição a manter o juros em 13,75% por mais tempo.

"Acho que é arrogância do Banco Central dizer 'se você não fizer a política fiscal que acho adequada, vou manter os juros altos'. Um sujeito que não foi eleito, simplesmente foi nomeado, pode falar grosso com o presidente?", questiona Mantega.

Ele, que por nove anos foi integrante do CMN (Conselho Monetário Nacional), órgão responsável pela fixação da meta de inflação, também está no grupo que defende a revisão das metas atuais, por considerá-las irrealistas e parte do problema dos juros elevados.

O sr. ainda é conselheiro econômico do presidente Lula? Continuo como sempre fui desde os anos 1990. Às vezes, ele me consulta, e eu mando mensagens para ele. Não tenho falado nos últimos dias. Desde que começou o governo, ele ficou numa situação complicada, e teve o 8 de janeiro [quando ocorreram os atos golpistas de bolsonaristas].

O que houve para ele ficar tão irritado com o presidente do Banco Central, inclusive se referindo a Campos Neto como "aquele cidadão"? A irritação tem fundamento. Lula sempre foi sensato. Perdeu as estribeiras porque ficou nervoso com a situação. Ele está vendo onde vai dar.

O presidente Lula assumiu o compromisso de estabelecer um novo pacto social, para termos um país crescendo, distribuindo renda, e também com aumento dos investimentos e dos lucros. A política monetária, como está, atrapalha esse crescimento.

A situação das Americanas não é só fraude fiscal, ela e outras empresas estão aí para mostrar o efeito da contração do crescimento e do consumo. Houve redução das compras. Uma taxa de juros desse tamanho também afeta os investimentos. Já está caindo o investimento no setor imobiliário. O custo do financiamento subiu e as pessoas não assumem crédito com essa taxa.

Ela afeta o Estado também. De um lado, a arrecadação cai, de outro, o custo da rolagem da dívida é de 6% a 7% do PIB ao ano. Em 2022, custo financeiro foi de R$ 600 bilhões.

Mas tivemos apenas um mês de governo, uma única reunião do Copom. Já dá para ficar irritado? Veja, ele está preocupado porque as decisões do Banco Central têm um efeito de longo prazo. Tivemos uma redução da inflação. Foi de de 10% para 5,8%, apesar de o governo Bolsonaro ter injetado R$ 300 bilhões na economia. O governo retirou os tributos, e os preços das commodities também cederam. A inflação caiu por isso, não por causa desse elevada taxa de juros.

Estamos começando o ano com queda de crescimento e no emprego. Não e um cenário, digamos, alvissareiro, e aí o Banco Central diz que vai manter a taxa de juros em 13,75%.

O BC alega que o cenário fiscal é incerto, e o governo ainda não encaminhou a nova regra fiscal. Não deu tempo, mas o ministro Fernando Haddad [Fazenda] até disse que vai antecipar a apresentação para abril, bem antes do prazo final previsto.

A Fazenda já tem inúmeras propostas de mudança da regra fiscal, mas o ministro disse que primeiro apresentaria o pacote de aumento de receita e a reforma tributária, deixando a discussão do novo arcabouço para depois. Se a ordem tivesse sido outra, talvez a conversa agora com o BC não estaria sendo diferente? Foi apresentada e aprovada uma PEC prevendo R$ 167 bilhões para este ano. A situação fiscal está definida. Sabemos qual vai ser o gasto acima do teto, que é abaixo dos R$ 300 bilhões que gastou o Bolsonaro. Haddad está dizendo que vai reduzir o déficit do ano em 1%. Nada indica que o governo será irresponsável. A economia está desacelerando e a trajetória da inflação é de queda.

Por que a gente vai achar que isso é inflacionário? Por que as expectativas se moveram? Desculpe, isso é previsão técnica malfeita.

E o que explica a taxa em 13,75%? Hoje, 90% das principais economias estão com taxa de juro real negativa. Não estou falando da Turquia, que tem inflação de 68% e uma taxa juros de 1%. Estou falando da União Europeia, que tem uma inflação de 7%, 8% e está com uma taxa de juros real negativa de 5%. Estou falando dos Estados Unidos, que tem inflação de 6% e taxa de juros de 4,75%.

Não estou dizendo para não combater a inflação. Quando tem inflação, precisa subir as taxas de juros, mas em que medida?

Jerome Powell, presidente do Fed, o banco central dos Estados Unidos, vinha aumentando 0,5 ponto percentual e agora aumentou 0,25. A inflação caiu de 9% para 6%. Ele está sendo prudente. Não se brinca com taxa de juros. Se usar mal, é mortal para a economia. Aqui está esse exagero. O Brasil tem a maior taxa de juros real do mundo, 8%. Por quê? Será que todos os outros presidentes de bancos centrais são incompetentes?

O sr. está dizendo que o comitê de política monetária do Banco Central não está sendo técnico e fala de um risco fiscal que não existe? Estou dizendo que está exagerando. No comunicado, o Banco Central falou de forma agressiva. Ele é que está agredindo e ameaçando. Ele está querendo fazer política fiscal. A função do Banco Central é cuidar da política monetária.

O que foi considerado agressivo no comunicado? Sinalizar que manteria essa taxa alta por muito tempo porque a política fiscal poderia ser expansionista. Acho que é arrogância do Banco Central dizer 'se você não fizer a política fiscal que acho adequada, vou manter os juros altos'. Um sujeito que não foi eleito, simplesmente foi nomeado, pode falar grosso com o presidente?

O Banco Central é independente, mas não pode ser utilizado como instrumento de pressão e ficar alheio ao que o governo está fazendo e esperando da economia.

E as contas do setor financeiro estão erradas e criaram a expectativa autorrealizada de que os juros futuros vão subir. E subiram. Estão fazendo uma espécie de terrorismo. O Banco Central está sintonizado com o mercado financeiro, que está forçando uma situação.

Aí é fácil ser presidente de Banco Central. Tem uma inflação caindo, mas não, diz que vai manter os juros em 13,75% para ancorar as expectativas. O que o Banco Central está fazendo é orientar as expectativas, e o mercado percebe isso.

O sr. está dizendo que o mercado trabalha com uma suposição de que o governo será gastador? Sim, o mercado está supondo que o governo poderá ser gastador. Na verdade, está fazendo uma chantagem para obrigar o governo a fazer a regra fiscal que ele quer. Quer substituir o teto de gasto por outra regra parecida com o teto. Tem esse braço de ferro também.

E ainda tem a questão da meta de inflação, totalmente irrealista. Tanto é assim que faz dois anos que ela não é alcançada. Um centro da meta de 3,25% para o ano 2023 não será alcançada. Serão três anos consecutivos com o BC mandando a cartinha para explicar porque não cumpriu.

Bom, por que não fazer ajuste?

Mas alterar a meta de inflação agora, no meio desse estresse, não vai ser pior? Revisão da meta de inflação está prevista na lei, e várias vezes ela foi mudada. Acho que a meta de 4% é mais correta. O BC vai continuar perseguindo a meta de inflação, mas pode ir mais devagar. Qual seria a diferença de ter uma taxa de 12,5% por exemplo? A contração financeira não ia continuar?

Eu acho que tudo isso está demonstrando que a independência do Banco Central foi mal implementada. Não funciona.

O fato de governo e BC não conseguirem em um mês um certo alinhamento, nesta primeira experiência de BC independente, já é uma comprovação de que deu errado? O Lula não é contra a independência do Banco Central. Sem lei, ele praticou. Mas o Banco Central não ficava dissociado do governo. Havia uma tentativa de sintonizar, para não ficar uma coisa sem pé nem cabeça.

Acho que o mandado pode ser junto com o do presidente. Foi fácil para o Bolsonaro criar esse modelo de independência porque colocou uma pessoa da confiança dele, alinhado com a política do Paulo Guedes.

Agora, governo novo ter de conviver com um BC não sintonizado, que toma decisões sem sentido, como manter essa taxa de juros, aí não funciona. Paralisa o país. Nem sei se é possível mudar agora, mas acho que seria o ideal.

Nos Estados Unidos, o novo governo fica um ano com o presidente anterior do Banco Central. Aqui no Brasil, você precisa ficar dois anos com um Banco Central hostil à política do governo.

O sr. sabe que na reunião do Copom, não prevalece a decisão do presidente. Sim. São 11 integrantes [na verdade são 9], mas a maioria vem do mercado financeiro e tem a mentalidade do juro alto. Mentalidade que, inclusive, só prevalece no Brasil. Juros altos prejudicam o mercado de capitais, coração de uma economia capitalista. Nos Estados Unidos, o setor financeiro ganha com ações, assim, a taxa de juros não sobe demais.

A história recente conta outra trajetória, não? Esse mesmo Banco Central do Campos Neto baixou os juros a 2%. E estava correto quando fez isso. Acho até que baixou demais. Podia ter ido a 5%. Mas ali ele foi ousado, porque o mundo entrou em crise e isso ajudou a economia a se recuperar, mas depois ele mudou de comportamento, não sei por que, e agora isso está sendo usado para obrigar o governo a fazer a política fiscal que o mercado quer. E o Banco Central entrou nessa. Banco Central tem que ter independência não apenas em relação ao governo, mas também em relação ao mercado financeiro.


RAIO -X
Guido Mantega, 73

Natural de Gênova, na Itália, é doutor em Sociologia do Desenvolvimento pela USP (Universidade de São Paulo), onde também cursou Economia e Ciências Sociais. Dedicado a vida acadêmica, é autor de inúmeros textos e professor de Economia da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas. Filiou-se ao PT em 1980 e iniciou a carreira pública na gestão de Luísa Erundina na Prefeitura de São Paulo. Integrou a coordenação do Programa Econômico do PT na campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República em 1989. Em 1993, passou a atuar como assessor econômico de Lula, com presença permanente nas campanhas do partido. Com o PT no governo federal, foi ministro do Planejamento (2003-2004), presidente do BNDES em 2005 e ministro da Fazenda (2006 a 2014).

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