Venda de ouro vai adotar nota fiscal eletrônica

Desde 2001, Receita Federal adotava nota de papel; expectativa de mudança agora recai sobre o fim da boa-fé

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Brasília

A comercialização do ouro do garimpo passa contar com nota fiscal eletrônica. A instrução normativa da Receita Federal oficializando a mudança foi publicada nesta quinta-feira (30).

Desde 2001, a Receita mantinha o uso da nota de papel, apesar de o documento digitalizado já ser usado na maioria dos setores. A nota fiscal eletrônica passará a ser exigida em julho deste ano.

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Vista de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, em Roraima; especialistas afirmam que mudança normativa é essencial para deter crime ambiental - Lalo de Almeida - 11.fev.23/Folhapress

A mudança era um pleito de organizações ambientalistas, entidades do setor de mineração e até pela Polícia Federal por ser considerado um instrumento importante para combater o garimpo ilegal, principalmente em terras indígenas e reservas ambientais.

"A exigência da nota fiscal eletrônica é uma medida fundamental para iniciar a moralização da comercialização do ouro no Brasil. Finalmente, o país começa a adotar as medidas de controle sobre o garimpo, na Amazônia", afirma Larissa Rodrigues, gerente de portfólio do Instituto Escolhas

A entidade participou do debate de mudança da regra, inclusive com a produção de pesquisas sobre os efeitos colateral da nota fiscal de papel. Um dos levantamento identificou que praticamente metade do ouro comercializado no Brasil tinha origem suspeita e que falhas no processo normativo contribuíam para essa situação.

A expectativa é que a nota eletrônica dê início à implementação de um sistema de rastreabilidade em toda a cadeia do setor. A nota é emitida na primeira compra de ouro, em sua maioria, por DTVMs (distribuidora de títulos e valores mobiliários), instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central a operarem com o metal.

"A nota fiscal eletrônica possibilita o rastreamento da origem do ouro comprado por algumas DTVMs, com indícios de ‘lavanderia' do garimpo ilegal, que destrói a natureza e nossos povos originários", afirma Raul Jungmann, presidente do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração).

A entidade, que representa as maiores empresas do setor de mineração, também trabalha pela mudança das regras do garimpo.

A adoção da nota fiscal eletrônica é a primeira mudança em um pacote de alterações legais previsto para a lavra garimpeira. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva também prepara a revogação da lei 12.844, que estabelecem o fim da presunção da boa-fé na compra do ouro, outra iniciativa considerada vital por Jungmann nesse processo de combate institucional ao garimpo ilegal.

A presunção da boa-fé desobriga as DTVMs de questionarem o primeiro vendedor sobre a origem do ouro, por isso, é apontada por especialistas em combate ao crime ambiental e financeiro como a principal brecha legal para lavar ouro extraído de terra indígena e reserva ambiental.

"Juntamente com o fim da ‘boa-fé’, a nota fiscal eletrônica é um um golpe letal na cadeia de ilícitos associada à produção e exportação do ouro de sangue, que o setor mineral sustentável repudia", afirma o presidente do Ibram.

BOA-FÉ É ALVO DE DEBATES

Diferentemente da nota fiscal eletrônica, cujo uso é consensual e que pode ser alterada por norma administrativa de um órgão federal, a lei da boa-fé é alvo de debates, tanto no Judiciário quanto no Legislativo, onde o lobby garimpeiro é forte entre diferentes partidos políticos.

O fim da boa-fé já está previsto em uma MP (Medida Provisória), ainda em fase final de elaboração no governo.

O texto estabelece uma série de novas exigências nas transações com o metal e abre caminho para se estabelecer a rastreabilidade, antigo pleito de quem combate o garimpo ilegal. A medida também deixa claro que o vendedor do ouro é responsável cível e criminalmente pelas informações prestadas durante a venda e o transporte.

A norma também é questionada no STF (Supremo Tribunal Federal). A corte avalia duas ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade), a ADI 7273, apresentada em novembro do ano passado por PSB e Rede Sustentabilidade, e a ADI 7345, do Partido Verde, protocolada em janeiro deste ano. Ambas estão com o ministro Gilmar Mendes.

Nesta segunda-feira (27), a entidade que representa DTVMs muito ativas no comércio de ouro de garimpo entrou no debate judicial sobre a presunção da boa-fé para defender a norma. A Anoro (Associação Nacional do Ouro) apresentou petição para fazer parte das ações que discutem no tema no STF na posição de amicus curiae (amigo da corte).

A entidade faz parte da história da norma. Segundo o deputado Odair Cunha (PT-MG), que apresentou os dispositivos na lei 12.844, em 2013, a regra da boa-fé foi feita para atender um pleito da própria Anoro. Os artigos em favor da lavra garimpeira foram inseridos numa MP sobre seguro agrícola, e a lei sancionada pela então presidente Dilma Rousseff.

Advogados que acompanham as discussões no Supremo acreditam que o pedido será aceito, uma vez que por tradição a corte considera contribuições de entidades que têm relação com os temas analisados.

No documento de 60 páginas protocolado no STF, a Anoro apresenta as suas iniciativas para dar mais transparência às transações no setor e defende a constitucionalidade da boa-fé apesar das inúmeras críticas entre especialistas.

Segundo a entidade, as DTVMs cumprem o seu papel dentro do previsto na lei, e o ouro ilegal entra no sistema por meio de outros canais, pois 35% do metal produzido no país seria regularizado por empresas não financeiras.

"Cabe apenas ao Estado averiguar e confirmar a regularidade produtiva do ouro em geral e particularmente do ouro ativo financeiro. Qualquer falha nisso não pode levar terceiros, como é o caso das instituições, a responderem por vícios da inação do Estado", destaca documento envido pela Anoro à Folha.

Chama a atenção dos advogados que acompanham as ações o fato de a Anoro apresentar pedidos ao STF. No texto, solicita à corte que não dê cautelar para suspender a boa-fé e que seja instalado processo de audiência pública para tratar da norma com diferentes agentes do setor.

"Nos parece uma tentativa da entidade de protelar uma decisão que precisa ser tomada o quanto antes, dado o descalabro do garimpo na Amazônia", diz Rafael, advogado WWF que acompanha as ações no STF.

"Não faz sentido, até porque o instrumento de amicus curiae pode fazer contribuições para ajudar o tribunal a tomar suas decisões, mas não pode pedir nada."

A secretária nacional de Assunto Jurídicos do PV, Vera Motta, afirma, ainda, que a manifestação parece não estar atenta aos trâmites do processo.

"De nosso ponto de vista, enquanto autores da demanda, cumpre alegar que a ADI 7345 já foi objeto de despacho do ministro relator, em que observou a relevância e a urgência da questão tratada nos autos", escreveu ela à reportagem.

"Ainda que assim não fosse, tanto a manifestação do Banco Central, quando da Agência Nacional de Mineração informam sobre a ausência de controle no comércio e obtenção de ouro, o que pode facilitar a extração ilegal e proveniente do garimpo."

Até o ano passado, a Anoro foi presidida pelo empresário e político Dirceu Santos Frederico Sobrinho, sócio fundador de uma das associadas da entidade, a FD Gold.

Sobrinho foi filiado ao PSDB e, em 2018, concorreu como primeiro suplente do senador Flecha Ribeiro, pelo estado do Pará. Em maio do ano passado, ele assumiu que a F.D'Gold era dona de 78 kg de ouro apreendidos pela Polícia Federal, em Sorocaba, interior de São Paulo. A carga estava em malas de viagem e despertou atenção por ser escoltada por policiais militares do estado de São Paulo. Sobrinho garantiu que o ouro era legal.

Em setembro, no entanto, foi preso numa blitz da Polícia Militar de São Paulo. Ele tinha um mandado de prisão temporária expedido pela Polícia Federal de Rondônia por ser suspeito de mineração ilegal na Amazônia.

Procurou pela reportagem, o empresário informou que apesar de seu nome ainda constar como presidente da entidade, ele deixou o comando da Anoro naquele mesmo mês de setembro.

Investigações, ainda em curso, na Polícia Federal e na CVM (Comissão de Valores Mobiliários), avaliam cinco empresas que concentram ouro com origem suspeita no país, sendo que uma delas é a empresa de Sobrinho.

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