Saiba por que um perfumista é quase tão raro quanto um astronauta

Brasil é o 2º maior mercado de perfumes do mundo, com vendas de R$ 34 bi ao ano, que não diminuíram nem na pandemia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São José dos Pinhais (PR)

Diz a lenda que existem mais astronautas do que perfumistas no mundo. A máxima parece ser um pouco exagerada: até hoje, foram para o espaço cerca de 500 astronautas desde 1961, quando o russo Iuri Gagárian se tornou o primeiro ser humano a viajar pelo espaço, informa o banco de dados internacional de astronautas da Aerospace Security, um projeto da organização americana sem fins lucrativos CSIS (Center for Strategic and International Studies).

Já quantificar o número de fazedores de perfume é bem mais difícil. Esta arte milenar, que teve como uma das maiores adeptas Cleópatra (69 a.C-30 a.c), mas que só nasceu na versão moderna, em vidro, em 1714, para ter como uns dos seus principais garotos propaganda Napoleão Bonaparte (1769-1821), exige muitos anos de dedicação. De acordo com a consultora e especialista em perfumes Renata Ashcar –autora de "Brasil Essência –a cultura do perfume" (editora Best Seller, 2001), e da edição bienal "Guia de Perfumes"– são cerca de 1.000 perfumistas formados em todo o mundo.

"No Brasil, eles somam menos de 40", diz Renata. Os profissionais precisam passar uma temporada, de no mínimo três anos, em uma das quatro grandes casas de perfumaria no mundo: a americana IFF (International Flavors & Fragrances), as suíças Givaudan e Firmenich ou a alemã Symrise, afirma a especialista. "Depois desse período, eles têm a chance de engatar um estágio na própria casa de perfumaria, onde completam a sua formação", afirma.

Homem grisalho, de jaqueta preta, sente o perfume de uma tira olfativa
O perfumista César Veiga, 55, confere amostras de óleos essencias no centro de pesquisa e desenvolvimento do Grupo Boticário. - Eduardo Knapp/Folhapress

Há ainda o renomado instituto francês ISIPCA (Institut Supérieur International du Parfum, de la Cosmétique et de l'Aromatique Alimentaire), em Versalhes, fundado pelo perfumista Jacques Edouard Guerlain. "Lá você aprende perfumaria em francês, é algo muito restrito", diz Renata, lembrando que todo o processo de fabricação do perfume é exclusivo. "São necessárias três toneladas de pétalas de rosas de maio, que nascem em Grasse, no sul da França, ou damascena, que crescem na Bulgária e na Turquia, para produzir um só litro de óleo de rosas, cujo preço chega a 12 mil euros [R$ 64 mil]", diz.

'Aprendi a confiar no nariz, não no cérebro'

No Brasil, não existe curso técnico ou superior para perfumista. Mas o candidato a criar novas fragrâncias deve ter formação em Química ou Farmácia. É o caso de Cesar Veiga, 55 anos, perfumista do grupo Boticário, que acaba de completar a sua formação na área no ISIPCA. Com 26 anos de Boticário, o bacharel em Farmácia passou cerca de seis no exterior fazendo cursos na França, na Alemanha e nos Estados Unidos, bancados pela empresa (que não revela o valor, mas está na casa de dezenas de milhares de euros e dólares).

"Na perfumaria, somos comparados ao maestro: fazemos a condução das matérias-primas para contar uma história, como se fosse uma sinfonia", disse Veiga à Folha, na sede do Boticário, em São José dos Pinhais (PR). "Trabalhamos com sensações, nosso papel é transformar o invisível em tangível, são os cheiros", diz. "Aprendi a confiar no nariz, não no cérebro."

Narizes aguçados como o de Cesar Veiga têm conseguido fazer com que a indústria da perfumaria torne concretos não só sentimentos, mas lucros crescentes. De acordo com a consultoria Euromonitor, em todo o mundo, o mercado de perfumes movimentou em 2022 US$ 57 bilhões (R$ 282,5 bilhões), uma alta de 7,5% sobre o ano anterior. A expectativa é chegar a US$ 79 bilhões (R$ 391,5 bilhões) até 2027.

O Brasil é o segundo maior mercado mundial de perfumaria, só atrás dos Estados Unidos. Movimentou US$ 6,8 bilhões (R$ 33,7 bilhões) no ano passado, um avanço de 24% sobre 2021. É um mercado tão resiliente, que nem mesmo o início da pandemia, em 2020, foi capaz de desaquecê-lo: naquele ano, o consumo nacional cresceu 8% (em dólar), enquanto o global recuou 13,5%. Para 2027, a previsão é atingir US$ 10 bilhões (R$ 49,5 bilhões).

Segundo a especialista Renata Ashcar, o perfume no Brasil revela as raízes culturais relacionadas aos povos indígenas, aos hábitos religiosos e à influência africana.

Já a analista da Euromonitor Mariana Teixeira destaca que a brasileira tem o costume de usar um perfume para cada ocasião –dia, noite, festas, o que contribui para aumentar o consumo da categoria, que representa mais do que o triplo das vendas de maquiagem. No ano passado, a pintura para rosto, olhos e boca somou US$ 2 bilhões (R$ 9,9 bilhões).

"No país, 90% do consumo de perfumes são de marcas massivas, em especial as brasileiras, com preços mais competitivos", afirma Mariana. "São marcas que sustentam o consumo, mesmo em períodos de crise", diz. A título de comparação, no principal mercado, os Estados Unidos, 88% das vendas de perfume vêm das marcas premium, como Dior, Lancôme e Chanel.

Equipe de tecnologia saltou de 200 para 2.500 em quatro anos no Boticário

No país, a liderança da perfumaria é disputada de igual para igual entre as brasileiras Natura e Boticário. "Mas o Boticário teve um crescimento acelerado em 2022, aproveitando a reabertura das lojas", diz Mariana. Além de O Boticário, o grupo é dono das marcas Eudora, Quem Disse Berenice?, Vult, O.U.i, Truss Professional, Dr. Jones, das varejistas Beleza na Web e Beautybox, além de ter a licença no Brasil para marcas como Australian Gold e Revlon.

O grupo entrou em um novo momento, com a reinauguração, no final do ano passado, do seu centro de pesquisa e desenvolvimento de produtos, chamado de "Laboratório do Futuro". A empresa foi a primeira a fazer uso da inteligência artificial para produzir um perfume –o Egeo, lançado em 2019. Desde então, os investimentos em tecnologia se aceleraram.

Nos últimos quatro anos, a empresa multiplicou por dez os investimentos na área (não revelados). Em pessoal, a equipe passou de 200 para 2.500 pessoas, no esforço para trazer mais inovação e qualidade aos produtos. O uso de inteligência artificial para criar novas fragrâncias continua, muitas vezes combinado a técnicas tradicionais, como a do headspace, criada nos anos 1970 para absorver alguns microgramas de moléculas responsáveis pela produção de odores.

"Em 2018, em uma viagem a Cuba, fomos ao Jardim Botânico e descobrimos uma palmeira com cheiro amadeirado, meio cítrico. Rapidamente usamos o headspace para captar este cheiro", diz Cesar Veiga, referindo-se ao mais recente cheiro que descobriu.

O cheiro novo é traduzido em uma fórmula ou ingredientes, que passam a integrar um banco de dados, abastecido com outras fórmulas, ingredientes, história da perfumaria e pesquisas com consumidores. A partir dessa análise, a inteligência artificial é capaz de identificar padrões e novas combinações para aquele novo cheiro. Nada que intimide Veiga, pelo contrário. "Um perfumista tem à disposição em torno de 3.000 ingredientes, sendo 350 de origem natural e mais de 2.500 de origem sintética", diz ele.

Para construir uma fórmula, o perfumista pode levar de seis meses a dois anos, afirma. "Mas em 24 horas o computador me mostra várias ideias com potencial de dar certo. Seleciono e vou para a bancada dar o toque final, a sensibilidade humana", diz ele. "A máquina é uma ferramenta, não um substituto do perfumista."

Inteligência artificial é usada para prestar serviços de beleza

No Boticário, a inteligência artificial também vem sendo usada no controle de qualidade dos produtos, diz Juliana Canellas, diretora de qualidade. "Temos um produto digital desenvolvido internamente, o Lyra, que está pronto para cruzar dados sobre fórmulas e embalagens com os testes de estabilidade de um produto, antes que ele seja lançado", diz Juliana, referindo-se aos testes para conferir a eficácia de itens como cremes e maquiagens.

O objetivo é diminuir o tempo de chegada do produto ao consumidor final, além de reduzir custos com os testes. "Reunimos os dados dos últimos 14 anos, envolvendo 3.000 estudos de estabilidade, com 7.500 testes feitos ao ano, e vamos começar a cruzar essas informações", afirma. "A nossa expectativa é adiantar o lançamento de um produto entre 60 e 90 dias, além de gerar uma economia de R$ 6 milhões ao ano com testes de estabilidade."

A concorrência, por sua vez, também está se mexendo quando o assunto é inteligência artificial, mas com uso voltado a serviços. O consumidor que chegar a uma das nove lojas da Natura pode ter um diagnóstico personalizado dos danos sofridos pelos seus cabelos. Um dispositivo acoplado ao celular, associado a um algoritmo de inteligência artificial proprietário, aumenta em 20 vezes a imagem do fio de cabelo para observar os danos. A partir daí, o consumidor tem acesso a mais de 15 mil combinações de produtos da linha Natura Lumina para tratamento.

Já a multinacional de perfumes e cosméticos L'Oréal comprou, em 2018, a empresa de inteligência artificial ModiFace, especializada em realidade aumentada. Desde então, foram mais de 1.400 serviços oferecidos. Um deles é o Effaclar Spotscan, da marca La Roche-Posay.

"A cliente tira três selfies e recebe uma recomendação personalizada da rotina de beleza que ela precisa adotar", diz Guilherme Eler, diretor de novos negócios e inovação do grupo no Brasil. "Depois que a ferramenta foi lançada, a taxa de conversão em vendas dobrou e o tíquete médio ficou 25% maior."

A repórter e o fotógrafo Eduardo Knapp viajaram a convite do grupo Boticário

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.