Projeto da Exxon quer fazer da Guiana o último petroestado do mundo

Críticos temem que boom do petróleo transforme Guiana em vítima da chamada 'maldição dos recursos'

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Jamie Smyth Joe Daniels
Georgetown (Guiana) e Bogotá | Financial Times

Dentro de um monótono prédio de seis andares em uma rua residencial na capital da Guiana, Georgetown, uma equipe de executivos da ExxonMobil está trabalhando para expandir um dos maiores projetos de petróleo offshore da história.

A gigante de energia dos Estados Unidos e seus parceiros Hess e o grupo chinês Cnooc, já descobriram cerca de 11 bilhões de barris de petróleo no bloco Stabroek, um vasto reservatório de petróleo a cerca de 200 quilômetros da costa do país.

Mais de US$ 55 bilhões em investimentos foram autorizados para extrair um pouco menos da metade dessas reservas, mas, após novas descobertas, o consórcio está aumentando a produção.

Sede atual da ExxonMobil em Georgetown, capital da Guiana - Sabrina Valle - 29.jun.2023/Reuters

"A maneira como fomos capazes de progredir tão rapidamente da descoberta para o desenvolvimento e produção, isso é de enorme valor para a Guiana", diz Alistair Routledge, presidente da ExxonMobil na Guiana. "Isso poderia entregar bem mais de US$ 100 bilhões para o país."

Um dos menores países da América do Sul, a Guiana não tinha um setor de hidrocarbonetos antes das descobertas em Stabroek. A prometida bonança financeira poderia criar um dos últimos petroestados do mundo, exatamente no momento em que os países prometem uma mudança para longe dos combustíveis fósseis.

O desenvolvimento do campo já está gerando um crescimento rápido em um país pobre —a economia da Guiana cresceu 33% no ano passado mesmo descontando a inflação, e o FMI prevê uma alta semelhante neste ano.

Os ativistas ambientais rotularam o projeto de "bomba climática" e apontam estudos sugerindo que o aquecimento global e o aumento do nível do mar poderiam deixar Georgetown submersa até 2030.

Há preocupações entre grupos civis e de direitos humanos, sindicatos e políticos da oposição de que a riqueza gerada pela bonança do petróleo da Exxon não chegará à população geral e causará mais mal do que bem.

Cientistas políticos e economistas chamam isso de maldição dos recursos: a extração de minerais recém-descobertos infla a moeda local, devasta a indústria doméstica e gera divisão social e corrupção.

Críticos dizem que o acordo de partilha de produção assinado pelo governo anterior em 2016 é excessivamente generoso com as empresas, uma visão compartilhada pelo FMI.

Também há preocupações de que a Exxon esteja muito próxima do governo atual, liderado pelo presidente Irfaan Ali, e esteja desrespeitando as leis ambientais.

Esse boom já está elevando os preços locais, aumentando a pressão sobre as famílias em um país onde quase metade dos 800 mil habitantes ainda vive com menos de US$ 5,50 por dia, a definição do Banco Mundial de pobreza para um país como a Guiana.

A greve dos professores está entrando no quarto mês e outros sindicatos de serviços públicos também ameaçam paralisações, argumentando que seus integrantes não conseguem sobreviver com "salários de fome".

Existem precedentes perturbadores para a maldição dos recursos. A Mobil, que a Exxon adquiriu posteriormente, descobriu petróleo na Guiné Equatorial em 1995; o boom de três décadas que se seguiu enriqueceu a família governante do país da África central, mas a maioria de sua população permaneceu atolada na pobreza.

Décadas de produção de petróleo no vizinho ocidental da Guiana, a Venezuela, deram lugar a má gestão econômica, corrupção e autoritarismo. O líder socialista do país, Nicolás Maduro, está revivendo uma reivindicação histórica a uma província guianense que inclui parte de Stabroek.

Schreiner Parker, especialista em América Latina do grupo de pesquisa Rystad Energy, diz que a Guiana é um "teste para a maldição dos recursos no século 21".

Desde o início da produção de petróleo no final de 2019, um boom do setor de construção ganhou ritmo em Georgetown, uma cidade conhecida por ruas arborizadas, rede de canais de irrigação e arquitetura colonial.

Estão sendo construídos vários hotéis de luxos, shoppings no estilo ocidental com Starbucks, um Hard Rock Cafe e uma sede de US$ 160 milhões da Exxon.

A gigante dos EUA se tornou um nome conhecido na Guiana, onde patrocina a equipe de críquete Guyana Amazon Warriors, doa dinheiro para uma variedade de iniciativas locais e paga por campanhas em outdoors que celebram seu papel em impulsionar a economia.

Construir uma indústria de petróleo do zero criou empregos locais, diz a empresa, com 6.200 guianenses por trás das atividades da ExxonMobil Guiana e seus terceirizados até o final do ano passado.

A empresa gastou o equivalente a US$ 1,49 bilhão com fornecedores da Guiana desde 2015, beneficiada em parte por leis de conteúdo local aprovadas em 2021.

Um deles é Robin Muneshwer, diretor-executivo de um proeminente conglomerado local e proprietário majoritário da Guyana Shore Base, que venceu uma licitação para fornecer plataformas de petróleo offshore e agora emprega mais de 900 pessoas para operar guindastes gigantes, navios e outros equipamentos.

"Somos o garoto propaganda para conteúdo local", diz Muneshwer, acrescentando que os sócios da empresa recentemente ganharam uma extensão de 11 anos do contrato. Ele diz que o governo está ciente dos riscos da maldição dos recursos e está utilizando o dinheiro do petróleo de forma sábia para diversificar a economia.

O verdadeiro perigo é garantir que setores da população não sejam deixados para trás e que o setor de recursos naturais não elimine outras partes da economia local, disse.

Acadêmicos dizem que as autoridades da Guiana estão numa corrida contra o tempo para mostrar que as receitas do petróleo serão compartilhadas de forma justa com o público e não serão mal utilizadas por políticos.

"Quando os países recebem grandes ganhos do petróleo, seus governos tendem a se tornar mais corruptos, menos responsáveis e torna-se cada vez mais raro ter eleições livres e justas", diz Michael Ross, professor de ciência política na UCLA e autor de "The Oil Curse: How Petroleum Wealth Shapes the Development of Nations" [A Maldição do Petróleo: Como a Riqueza Petrolífera Molda o Desenvolvimento das Nações].

Ele destaca que o governo deve negociar com uma empresa cujo fluxo de caixa no ano passado foi mais de três vezes o PIB do país e que tem uma enorme experiência em elaborar contratos complexos.

"A Exxon não é sua amiga", diz Ross. "Eles querem que você pense que são, mas não são. Eles são parceiros de negócios interessados apenas neles mesmos, com enormes vantagens na mesa de negociações".

Os riscos para a democracia de 32 anos da Guiana foram ressaltados nas últimas eleições gerais, em 2020, quando o presidente em exercício, David Granger, se recusou a renunciar após uma recontagem de votos mostrando que ele perdeu por pouco.

Somente a imposição de sanções dos EUA forçou o militar aposentado a deixar o poder em meio a surtos esporádicos de violência em uma nação dividida entre pessoas de descendência africana, indiana e indígena.

A próxima eleição está prevista para 2025 e os partidos de oposição já estão colocando as receitas do petróleo, a conformidade do consórcio com a lei guianense e preocupações sobre a maldição dos recursos no centro de suas campanhas.

"Precisamos obter mais desses recursos petrolíferos", diz Aubrey Norton, líder da oposição. "Nos primeiros 100 dias, vamos buscar e negociar com a Exxon para garantir que o povo da Guiana se beneficie".

Uma decisão da Suprema Corte do país no ano passado exigiu que o consórcio fornecesse uma garantia financeira "ilimitada" para cobrir o custo de qualquer derramamento de petróleo, de acordo com Norton. A Exxon concordou desde então em depositar uma garantia de US$ 2 bilhões enquanto aguarda o resultado do recurso.

Melinda Janki, ex-advogada da BP que fez lobby por mudanças em partes da constituição do Guiana relacionadas ao meio ambiente, está envolvida nesse caso e em vários outros. Ela afirma que os reguladores ambientais e o governo estão se recusando a responsabilizar a Exxon, arriscando um desastre ambiental e financeiro para o país.

"Essas plataformas de perfuração são operações muito perigosas. Elas estão produzindo petróleo acima dos limites estabelecidos nas avaliações de impacto ambiental", diz Janki.

Ela alerta que um desastre semelhante ao do Deepwater Horizon em 2010 devastaria a Guiana e outras vias navegáveis do Caribe. Aquele vazamento, que matou 11 trabalhadores e derramou 4 milhões de barris de petróleo no Golfo do México, custou à BP US$ 69 bilhões.

A Exxon nega as alegações de Janki, dizendo que nunca comprometeria a segurança e que suas instalações offshore podem operar "acima da capacidade projetada" e alcançar produção adicional com segurança após reavaliações ou estudos de desobstrução.

Mas a advogada, nascida na Guiana, promete continuar lutando contra o consórcio e o governo, argumentando que o acordo firmado entre as partes "vendeu nosso patrimônio".

Analistas de Wall Street consideram o acordo de partilha de produção assinado em 2016 como "o melhor acordo petrolífero da história moderna" devido à escala do recurso e aos termos.

Consultores da Wood Mackenzie preveem que a Exxon e seus parceiros gerarão US$ 135 bilhões em lucros entre 2024 e 2040. A Guiana receberá US$ 150 bilhões no mesmo período, uma quantia impressionante para um país que teve um orçamento nacional de US$ 3,75 bilhões no ano passado.

O consórcio pode coletar até três quartos da receita do projeto até que seus custos sejam recuperados. O restante é repartido pela metade com o governo, que também recebe royalties de 2% sobre a produção do campo —abaixo do nível na maioria dos projetos de petróleo offshore. O grupo concordou em pagar impostos com a parcela dos lucros.

O acordo é tão lucrativo que em março desencadeou uma batalha corporativa entre a Exxon e a rival americana Chevron, que deseja comprar a Hess em um acordo de US$ 53 bilhões.

"O acordo petrolífero que temos é uma forma legalizada de banditismo rodoviário", diz Glenn Lall, publisher do Kaieteur News, um jornal da Guiana que criticou tanto o governo quanto a oposição por gerirem mal o relacionamento com as empresas petrolíferas. Ele afirma que os guianenses estão recebendo "migalhas".

Lall diz que a Exxon, a indústria do petróleo e o governo estão agindo cada vez mais em conjunto para impedir críticas, inclusive contratando vários jornalistas do Kaieteur News.

Alistair Routledge, o presidente da Exxon no país, disse que Lall é um crítico constante com ambições políticas e "um interesse pessoal", acrescentando que "este é um contrato competitivo que está trazendo investimento para o país".

O presidente Ali reconhece que o acordo está "inclinado a favor" da Exxon, mas não buscou uma renegociação.

"O tamanho da Exxon, em termos de economia, mostra que você simplesmente não poderia mudar o contrato", disse ao Financial Times. "Isso teria implicações legais e todo o setor teria sido paralisado."

Quaisquer novos acordos com empresas de petróleo não seriam tão "desiguais", diz Ali, acrescentando que está implementando reformas para trazer mais transparência ao setor de petróleo da Guiana, diversificar a economia e investir em infraestrutura, saúde e educação.

O presidente da Guiana, Irfaan Ali

Em 2021, seu governo aprovou legislação para aumentar a supervisão sobre o fundo de recursos naturais da Guiana, em conformidade com os princípios estabelecidos pelo IFSWF.

No entanto, em janeiro, o governo propôs suspender algumas restrições sobre a quantidade de dinheiro que pode ser retirada do fundo. Mais recentemente, autoridades dos EUA impuseram sanções a um alto funcionário guianense e vários empresários proeminentes supostamente envolvidos em um esquema de fraude fiscal de US$ 50 milhões no setor de ouro.

Mae Thomas, secretária do Ministério do Trabalho da Guiana, concedeu benefícios a Nazar e Azruddin Mohamed em troca de dinheiro e presentes, de acordo com o Tesouro dos EUA.

Críticos dizem que esses episódios destacam a necessidade de fiscalização e supervisão adequadas. O governo diz que afastou Thomas e defendeu seu histórico na erradicação da corrupção.

Jornalistas estrangeiros não devem ter uma mentalidade tendenciosa sobre a Guiana, diz Ali, acrescentando que há "muita corrupção [em outros lugares] no mundo desenvolvido".

Ali também deve garantir que um público cético comece a ver alguns benefícios do investimento estrangeiro que está fazendo os aluguéis e os preços dos alimentos subirem rapidamente.

A estimativa da inflação registrada no país em 2023 é de 6,6%, de acordo com o Departamento de Estado dos EUA, mas os preços dos alimentos subiram muito mais rapidamente nos últimos anos.

"Desde que o petróleo chegou, ficou um pouco mais difícil sobreviver", diz Olivia, vendedora ambulante de amendoim e outros alimentos perto do hotel Marriott, onde as diárias custam até US$ 600 por noite. "Está ficando complicado porque nós não estamos recebendo o dinheiro do petróleo. As pessoas não querem pagar esse dinheiro", disse.

O descontentamento já está surgindo. Muitos professores estão em greve há mais de 60 dias, exigindo um aumento de 20% nos salários. O sindicato dos serviços públicos, que representa outros trabalhadores do setor público, também ameaçou entrar em greve por questões salariais.

"Nossa economia agora é uma economia do petróleo, não é mais uma economia para as pessoas locais. Estamos em modo de sobrevivência", diz Mehalai McAlmont, que leciona na escola secundária Tutorial Academy em New Amsterdam.

Ela diz que os preços dos alimentos dispararam desde que começou a extração do petróleo, em 2019, enquanto os salários dos professores estagnaram. Estatísticas oficiais sugerem que a inflação da alimentação no período é de cerca de 33%.

A descoberta de petróleo pela Exxon na Guiana representa outro aspecto da maldição dos recursos: conflito com um vizinho. Ross, da UCLA, adverte que há paralelos preocupantes entre a primeira Guerra do Golfo em 1990, quando o Iraque invadiu o Kuwait, rico em petróleo, e a ameaça da Venezuela de invadir a Guiana.

A Venezuela reivindica há muito tempo a região de Essequibo, que compreende cerca de dois terços do território guianense e inclui parte do Bloco Stabroek em sua costa.

Em dezembro, o presidente venezuelano Maduro realizou um referendo no qual afirmou que os eleitores aprovaram a criação da nova província venezuelana de Essequibo.

Nicolás Maduro promulga lei que cria o estado de Guiana Essequiba, na região do Essequibo, que pertence à Guiana
Em abril, Nicolás Maduro promulgou lei que 'cria' o estado de Guiana Essequiba, na região do Essequibo, que pertence à Guiana - Reprodução/Governo da Venezuela

Ele também ordenou que empresas estatais concedam licenças para exploração e produção lá. "A ExxonMobil não vai entrar nesse mar... eles devem saber disso", disse Maduro fevereiro, depois que Routledge revelou planos para duas perfurações de exploração na costa de Essequibo.

Um pequeno, mas constante, aumento da presença militar foi documentado por pesquisadores na fronteira. Os EUA, que aumentaram significativamente a cooperação com a Guiana desde a descoberta de petróleo pela Exxon, realizaram exercícios militares com as Forças de Defesa da Guiana.

A Exxon diz que as ameaças de Maduro "não estão fazendo diferença" em seus planos de investimento e minimiza o risco de a Guiana se tornar vítima da maldição dos recursos.

"Nossa reputação está fortemente ligada a garantir que tudo aconteça da melhor maneira possível", diz Routledge. Ali, por sua vez, enfatizou a "parceria militar em expansão de seu país com os EUA".

Mas analistas dizem que as crescentes tensões destacam como a descoberta repentina de riquezas petrolíferas aumenta os riscos de conflito, tanto internos quanto com países vizinhos.

Ross, o pesquisador da UCLA, aponta para muitos exemplos de países que sucumbiram à maldição dos recursos e diz que a Guiana enfrenta "uma tarefa gigantesca" se quiser evitar se juntar a eles.

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