Descrição de chapéu Reforma tributária

Inclusão da carne na cesta básica envolveu benefício fiscal 'oculto' e discussão sobre 'boi bípede'

Sabatina de auditor e debate sobre desoneração da picanha marcaram negociação da reforma tributária

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São Paulo

Benefícios fiscais "ocultos" e impostos pouco transparentes estão por trás da guerra de números travada durante as discussões sobre a inclusão das carnes na cesta básica da reforma tributária.

Embora a questão tenha sido resolvida na Câmara, durante a votação da lista de alimentos com alíquota zero, o Senado ainda pode ressuscitar uma discussão que assombra toda a cadeia de produção e venda de proteínas animais.

Duas perguntas estiveram no ar entre a apresentação da proposta do governo para a lista da cesta básica, no final de abril, e sua votação pelos deputados, no começo de julho: qual a tributação atual das carnes bovinas e qual o impacto da sua desoneração sobre a carga dos demais bens e serviços?

O sistema atual não permite que se saiba qual a carga tributária exata de qualquer produto, mesmo daqueles que, pela lei, são isentos.

Mesmos as carnes nobres foram incluídas na lista de produtos da cesta básica nacional, que terão alíquota zero, na reforma tributária - Keiny Andrade - 20.ago.2018/Folhapress

Em um primeiro momento, o governo pensou em desonerar apenas os cortes mais consumidos pela população de menor renda, mas experiências anteriores resultaram em fraudes.

A classificação padrão é a separação do boi entre quartos dianteiros e quartos traseiros. Em geral, as carnes nobres estão na parte de trás.

Uma brincadeira, com base em fatos reais, diz que, em alguns estados que tentaram fazer a separação, auditores fiscais constataram que os bois se tornaram bípedes. Só havia quartos dianteiros (carnes contempladas com tributação menor) chegando aos açougues.

O governo propôs então reduzir a alíquota dessas proteínas em 60%, o que resultaria em uma tributação estimada em cerca de 10% (8,5% para quem recebesse o cashback, que é a devolução de parte do imposto).

Na apresentação do projeto, o secretário Bernard Appy chegou a afirmar que a picanha estava desonerada, mesmo sem a isenção, estimando uma tributação atual acima de 12%.

Um estudo do Banco Mundial que serve de referência para as discussões da reforma aponta uma carga atual de 14,41% nas carnes, apenas dos tributos que mudam com a reforma.

Os números foram contestados pelo setor durante os debates no Congresso, com o argumento de que as carnes estão na cesta básica do governo federal, com isenção das contribuições sociais PIS e Cofins.

Já o governo apontava que o preço desse alimento contém resíduo tributário das despesas das empresas que estão na cadeia de produção, do produtor até o supermercado, passando pelos grandes frigoríficos. Resíduo de tributos federais e também do ISS municipal e do ICMS estadual.

Também não houve entendimento sobre o peso desse último imposto. A maioria dos estados tem alíquota nominal de ICMS para carnes de 7% nas vendas internas e 12% nas operações interestaduais. Esses números não consideram, no entanto, benefícios fiscais espalhados pelo país.

No momento mais tenso das discussões, diante da possibilidade de perder a disputa pela isenção, as grandes empresas do setor decidiram colocar na mesa a existência desses incentivos, que vão acabar após a implantação total da reforma em 2033.

Muitos benefícios estiveram ocultos até a década passada, quando foram considerados inconstitucionais pelo Judiciário. Em 2017, o Congresso permitiu a regularização por 15 anos, desde que fosse dada publicidade a eles.

Embora a legislação não permita a concessão de incentivos ocultos, é praticamente impossível mapear as desonerações espalhadas pelo país. Em alguns casos, direcionadas a uma planta específica de uma empresa.

O sistema atual, no entanto, é tão confuso que não está claro o efeito desses incentivos nos preços e na carga tributária das carnes.

Técnicos do governo argumentaram que alguns desses benefícios são créditos que só podem ser usados nas operações interestaduais. Como boa parte do consumo é interno, devido à grande quantidade de plantas pelo país, muitos não são aproveitados.

A tensão nos debates sobre os números fez com que, no dia da votação na Câmara, um auditor da Receita Federal fosse convocado para ir até a residência oficial do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para uma "sabatina" sobre o modelo utilizado para calcular a tributação das carnes, na presença do ministro Fernando Haddad (Fazenda) e de outros parlamentares e técnicos do governo.

A Receita estimou um impacto de 0,53 ponto percentual na alíquota sobre os demais produtos para bancar a desoneração das carnes. A metodologia do Banco Mundial mostra impacto de 0,56 ponto. O setor de alimentos falou em um efeito marginal.

A avaliação é que o técnico se saiu bem. Ainda assim, por questões políticas, os deputados decidiram desonerar as carnes, com o apoio do presidente Lula, em uma derrota para Lira e Haddad.

Caso a isenção seja mantida pelo Senado, o benefício para o consumidor dependerá da disposição das empresas de repassar a desoneração para os preços. A área técnica do governo defendia a devolução do imposto sobre as carnes (cashback) para o terço de menor renda da população, mas foi voto vencido.

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