Descrição de chapéu The New York Times

Crematórios adotam modelo de startups para oferecer serviço pela internet

Crescimento do setor nos Estados Unidos esbarra em exigência legais

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Michael Waters
Nova York | The New York Times

Menos de duas horas depois que você reserva uma cremação na Eirene, uma startup de Ontário, Canadá, a empresa despacha um carro fúnebre para transportar o corpo de seu ente querido para uma instalação de armazenagem refrigerada, onde ele fica até que a companhia complete o processamento dos documentos necessários para a cremação.

Em seguida, um dos parceiros da empresa crema o corpo, e uma funerária que trabalha para a Eirene se encarrega de levar as cinzas ou enviá-las pelo correio para a família. O processo todo demora cerca de uma semana.

É exatamente o que prometem marcas que vendem direto ao consumidor, como a Casper, mas adaptado ao setor de serviços funerários.

Adotar essa abordagem em um ramo que tem a carga emocional —e a complexidade legal– do setor de serviços funerários pode parecer implausível. Mas à medida que a proporção de cremações cresce na América do Norte (em 2025, a cremação deve responder pelos ritos finais de cerca de 63% dos mortos nos Estados Unidos), os investidores apostam que o futuro do ramo está no comércio eletrônico.

Mallory Greene, fundadora da startup Eirene, segura uma urna para cremação
Mallory Greene, fundadora da startup Eirene, segura uma urna para cremação - Nathan Cyprys/The New York Times

Ao mesmo tempo, pessoas da geração millennial e da geração X estão tomando decisões sobre o final de vida de seus pais, e algumas delas esperam um processo que seja tão simples como o de encomendar alguma coisa online.

Para atendê-las, novas empresas com nomes como Solace, Tulip, Smart Cremation, After Cremation, Eirene e Lumen estão tomando emprestados tanto os modelos de negócios quanto o visual leve e a tipografia enxuta de startups como a Glossier e a Allbirds —tudo isso com a esperança de fazer das cremações o próximo passo no avanço dos serviços online.

Mas esse futuro vai requerer uma restruturação considerável do setor funerário.

No momento, uma proporção minúscula dos funerais e cremações realizados nos Estados Unidos são encomendados online A maioria dos americanos recorre a uma das 18,8 mil funerárias tradicionais existentes no país, e poucas delas têm sites ativos na web.

Um relatório de 2018 constatou que apenas 16% dessas empresas ofereciam listas completas de preços online (embora o número deva ter mudado durante a pandemia). As startups de cremação online podem ser novidade em 2022, mas à medida que as pessoas que cresceram com o consumo digital envelhecerem, ao longo das próximas décadas, a situação pode mudar.

"É um dos setores que realmente não mudou nos últimos cem anos", disse Mallory Greene, fundadora da Eirene. "Ainda é preciso ir a uma funerária, fazer os arranjos, preencher uma enorme papelada". Para pessoas que estão de luto, ela disse, tudo isso é "obviamente muito desgastante e doloroso".

No momento, "a geração X é aquela para a qual direcionamos nosso marketing", ela disse, em boa parte porque as pessoas dessa faixa etária respondem pela organização da maior parte dos funerais hoje.

Mas ela diz que a geração millennial pode representar um grupo importante de clientes no futuro. "Quando ela começar a organizar os arranjos, creio que o lado digital virá a ter uma presença mais pesada."

O pai de Greene era agente funerário em uma funerária independente em Toronto, Canadá. Ainda que ela inicialmente tenha procurado uma carreira no segmento de tecnologia financeira, sempre soube que queria criar uma empresa, e não conseguia tirar da cabeça a ideia de remodelar o setor de serviços funerários.

Ela criou a Eirene em 2019, com o objetivo de eliminar o estresse e a logística da tarefa de organizar uma cremação.

Por volta da mesma época, dois antigos executivos da Nike criaram a Solace, com a ajuda de um modesto investimento de US$ 1,7 milhão (R$ 9,5 milhões) de empresas de capital para empreendimentos. A Solace agora opera, nos Estados Unidos, em Seattle, Portland (Oregon) e diversas cidades do sul da Califórnia.

Também em 2019, uma grande operadora de funerárias, o Foundation Partners Group, adquiriu a startup Tulip Cremation, que hoje opera em oito estados americanos.

A empresa conta com capital considerável: o controlador do Foundation Partners Group é o grupo de capital privado Access Holdings, que anunciou no ano passado que investiria US$ 150 milhões (R$ 280 milhões) para melhorar o lado tecnológico do negócio funerário.

Em outubro, a After Cremation, de Utah, revelou ter obtido US$ 1 milhão (R$ 5,6 milhões) em investimentos em uma rodada de capital para empreendimentos.

A proposta, para os investidores e os clientes, baseia-se em conveniência e preço. As empresas apontam para o número crescente de americanos que vivem longe de seus locais de origem como seu público-alvo.

"Não seria tão incomum que um pai idoso morresse na Flórida, por exemplo, enquanto seus filhos moram no nordeste do país", disse Mike Doyle, diretor geral da Tulip.

Isso não significa que as pessoas vão recorrer automaticamente a uma startup online. Muitas famílias recorrem aos serviços das mesmas funerárias há gerações, e será preciso mais que um pouco de inconveniência para convencer os clientes a mudar.

Um argumento mais persuasivo, para um cliente médio, seria o preço. Uma cremação típica custa alguns milhares de dólares, mas essas startups anunciam preços entre US$ 800 (R$ 4.400) e US$ 1.000 (R$ 5.600).

Elas trabalham sob contrato com crematórios que operam no atacado, e as startups dizem que podem repassar aos clientes aquilo que economizam em custos. Além disso, "com a tecnologia certa para permitir um processo mais eficiente, podemos lidar com mais cremações do que uma funerária típica", disse Keith Crawford, um dos fundadores e presidente-executivo da Solace.

O começo das operações vem sendo lento. Em dezembro, a Tulip completou sua cremação número 20 mil, desde que começou a operar em 2018. A Solace só revela que seu número atual de clientes "está na casa dos milhares". A Lumen, uma pequena empresa de Nashville, Tennessee, disse que estava chegando aos 300 clientes, desde sua entrada em operação, em abril do ano passado.

"Com base no dinheiro que está entrando e no número de pessoas a que eles estão atendendo, é um ramo muito pequeno, por enquanto", disse Suelin Chen, presidente-executiva e fundadora do Cake, um site que ajuda pessoas a planejar o final de suas vidas. No entanto, "acredito que essas empresas tenham uma influência desproporcional", ela acrescentou.

As empresas novas estão encontrando um problema mais fundamental: a cremação não parece se enquadrar bem ao comércio online. As startups operam em sua maioria como empresas de tecnologia. Criam um site e uma plataforma de operações que permitem que uma pessoa faça um pedido, mas dependem de outros fornecedores para quase tudo mais.

Operar como um fornecedor de tecnologia pode funcionar bem, digamos, no ramo de viagens e hospedagem, mas no de serviços funerários há dores de cabeça específicas.

Em quase todos os estados americanos, os consumidores só podem adquirir serviços de cremação de funerárias licenciadas. Isso significa que cada startup precisa de uma parceira física em cada estado onde ofereça serviços.

A Eirene tem um pequeno escritório, por motivos regulatórios, mas Greene diz que cliente algum pediu para visitar a empresa, até agora. Crawford disse que a Solace tem pequenos escritórios em Seattle, Portland e Los Angeles, dos quais os agentes funerários com os quais ela trabalha "operam ocasionalmente", mas a maior parte de sua equipe trabalha de forma remota.

Outros estados têm requisitos tão rigorosos que é difícil imaginar que um negócio oferecido pelas startups de cremação venha um dia a ser possível neles. O Alabama, por exemplo, requer que as funerárias tenham uma sala de reuniões, um espaço para exposição que possa conter "até oito caixões para adultos" e uma sala para velórios com capacidade para pelo menos cem pessoas.

"Quase todos os estados têm requisitos de licenciamento que foram estabelecidos sem contemplar um modelo de negócios como esse", disse Doyle. "À medida que continuamos a crescer, as fricções regulatórias com certeza desaceleram um pouco o processo."

Victoria Haneman, professora de direito na Universidade Creighton (Nebraska) e estudiosa do negócio funerário, disse que "muitos dos regulamentos estaduais são obsoletos e completamente desnecessários".

Mallory Greene, fundadora da Eirene
Mallory Greene, fundadora da Eirene - Nathan Cyprys/New York Times

Ainda que os consumidores se beneficiem da regulamentação federal quanto a divulgação de preços, algumas das regras em nível estadual protegem as empresas já estabelecidas e desestimulam o surgimento de novos operadores, segundo ela.

A Tulip, por exemplo, pode estar na melhor posição para fazer com que seu modelo econômico funcione. A empresa que a controla, Foundation Partners Group, já é dona de mais de 170 funerárias, crematórios e cemitérios em 22 estados, e a Tulip está usando essa infraestrutura para atender aos seus clientes online. Diferentemente de seus concorrentes, ela não precisa gastar dinheiro mantendo instalações físicas sem utilidade.

A Smart Cremation, que está em operação há mais de uma década, desfruta dos mesmos privilégios: ela é controlada pelo NorthStar Memorial Group, uma companhia que opera mais de 75 funerárias e cemitérios.

Algumas funerárias tradicionais já oferecem uma versão desse tipo de serviço há décadas. Barbara Kemmis, diretora-executiva da Associação de Cremação da América do Norte, recorda que, quando seu irmão morreu, na universidade, em Wisconsin, na década de 1990, o serviço funerário local enviou os restos mortais aos pais deles, que viviam no Texas.

Mas algo de novo está acontecendo. "Não há como obter estatísticas sobre o número de urnas que estão sendo enviadas pelo correio, mas, com base em informações dispersas obtidas de nossos integrantes, estamos ouvindo falar de um aumento dramático nos números", disse Kemmis.

Nos Estados Unidos, os restos mortais de uma cremação só podem ser encaminhados como encomenda por meio do U.S. Postal Service, e o correio introduziu em 2019 um sistema de postagem chamado label 139 para cuidar desse tipo de pacote.

O rótulo foi projetado para aumentar a visibilidade desses volumes e encorajar mais cautela por parte das pessoas que lidam com eles. Não é um serviço barato —enviar uma urna via label 139 pode custar US$ 100 (R$ 560) ou mais—, mas o sistema é efetivo.

A Tulip informou que cerca de 75% de seus clientes optaram por receber via correio os restos mortais de seus parentes cremados. Na Solace, a proporção fica mais próxima de um terço, e as demais urnas são entregues por motoristas licenciados.

A pandemia acelerou em diversos anos a ascensão do comércio eletrônico, de acordo com algumas estimativas, e por isso a chegada dessas empresas ao mercado se enquadra em um padrão. "Se você observar todos os demais setores, os modelos online estão começando a se tornar a norma", disse Greene.

Mas no setor de serviços funerários, mesmo pequenas mudanças como essa podem parecer importantes. "Creio que ainda estamos longe de ter um app que permita realizar arranjos funérios na hora", ela disse. "Não acho que já chegamos a esse ponto. Mas acredito que as necessidades dos consumidores estejam definitivamente mudando."

Tradução de Paulo Migliacci

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