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17/03/1913 - 04h13

Diário de Bagdá, 2003 - A hora do desabafo

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SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

Leia texto publicado em 13 de abril de 2003 como parte do "Diário de Bagdá", relatos do jornalista Sérgio Dávila e do repórter fotográfico Juca Varella, enviados da Folha a Bagdá por ocasião da invasão americana ao país.

""Agora posso dizer, Saddam Hussein era um ditador sanguinário!" Ala'a Jabour está gritando no meio do lobby do hotel Sheraton, um dos dois únicos da cidade com gerador, portanto um dos dois pontos de Bagdá com energia na noite de ontem.

Ninguém repara nele, já que frases semelhantes têm sido faladas cada vez mais e com mais naturalidade nas últimas horas no Iraque. Ala'a foi o motorista apontado pelo então Ministério da Informação para a Folha na primeira incursão da equipe pela capital iraquiana, há dez dias.

"Ninguém gostava dele, eu via as pessoas cantando nas ruas e falando bem de Saddam e sabia que era tudo posado, tudo obrigado pelo pessoal do partido (Baath, governista)", diz o bagdali, emocionado e bem mais magro.

Os últimos dias não foram fáceis para o esperto iraquiano, que há um ano deixou seu emprego de professor porque ganhava US$ 30 por mês. Sua família imediata sobreviveu aos bombardeios e ao caos, mas um tio paterno e os dois filhos dele morreram queimados. "É uma vergonha." Desde que os marines tomaram o centro de Bagdá, Ala'a dá expediente nos lobbies dos hotéis Palestine e Sheraton.

Os 150 jornalistas estrangeiros que estavam na cidade até quarta-feira ganharam a companhia de pelo menos mais 300 colegas, que desembarcaram nas noites de anteontem e ontem.

A superlotação, aliada a uma cidade semiparalisada pela guerra, compõe um cenário que lembra os abrigos de emergência municipais que se seguem a enchentes, furacões e maremotos.

Pessoas dormem no chão, ao lado de malas empilhadas e equipamentos jogados. Não há água corrente nem energia elétrica, e os banheiros públicos entupiram. Todos os quartos estão tomados e boa parte dos corredores também.

No hotel Sheraton, o gerente foi obrigado a alugar o oitavo andar, ainda no meio de uma reforma.

Assim, os hóspedes deitam-se no chão de cimento ou em sacos de dormir, já que as camas ainda não tinham sido instaladas, e não podem usar os banheiros, por falta de sanitários e de encanamento.

A situação no Palestine não é diferente. "Se você tiver um amigo hospedado no hotel, pode tentar alugar o hall de entrada dele", diz um funcionário na recepção que não quer dar o nome. "Tem muita gente fazendo isso."

NEGOCIAÇÕES

O iraquiano é o que sobrou da gerência do local, até então uma empresa estatal como quase todos os hotéis do Iraque pré-queda. A chefia desapareceu na última quarta junto da equipe do Ministério da Informação, que tinha se mudado para cá depois que sua sede fora bombardeada.

Corajoso e decidido, o funcionário pediu a intervenção dos marines norte-americanos para evitar que também os quartos dos jornalistas fossem saqueados na comoção popular que tomou a cidade nas últimas 72 horas.

Após muita negociação, o comando dos soldados aceitou guardar o local, desde que a tropa tivesse livre acesso.

Feito o acordo, pelo menos dois tanques e quatro carros-tanques foram manobrados para o estacionamento do Palestine, que continua seguindo com sua vocação de alvo militar -antes, da coalizão anglo-americana, agora, da pequena resistência iraquiana.

O resultado é que, no lugar dos guias/espiões, da polícia secreta e dos barnabés de Saddam Hussein, os jornalistas estrangeiros passaram a conviver com garotos claros e vermelhos de sol de 20 e poucos anos vindos de lugares como Ohio, Texas e Nova Jersey e armados de M-16 e pistolas.

Pode-se usar livremente telefones por satélite, que eram um dos grandes tabus da administração anterior; em compensação, todos os que entram e saem sofrem uma revista em busca de armas.

Muda o comando, mas alguns hábitos persistem. Não há mais gente querendo morder a maior quantidade de dólares possível dos jornalistas, prática que era incentivada pelo próprio diretor de imprensa de Saddam Hussein.

Em compensação, um recruta que vigiava a entrada principal do Palestine sugeriu que relaxaria a guarda se recebesse de presente uma nota de real, para sua coleção de moedas de lugares exóticos.

DE VOLTA A OUTRA BAGDÁ

Dez dias depois, a volta a Bagdá.

É outra cidade. Comparada com a Bagdá atual, dos saques, da falta de luz, da violência civil, da pilhagem de hospitais, da falta de comando, a Bagdá das duas primeiras semanas de guerra era Nova York ou Genebra, na Suíça.

É uma cidade-zumbi, em que as pessoas caminham pela rua podendo fazer o que querem pela primeira vez em três décadas, mas sem saber o que fazer.

Tudo o que era do Estado está sendo saqueado. O problema é que tudo era do Estado, de hospitais a casas de câmbio, passando por parques de diversão e muitos restaurantes.

As únicas construções preservadas são as mesquitas. E também igrejas de outras religiões, como as católicas (são várias).

Aliás, um dos que mais trabalha é o núncio do Vaticano, que toca uma espécie de embaixada local do papado e dá passaportes provisórios para as milhares de pessoas sem documentos que querem deixar o país.

Muda a desgraça, mudam as prioridades. Agora, o artigo mais procurado no comércio é uma tomada com eletricidade. Há bagdalis que sabem onde estão as menos de dez que funcionam nos hotéis, e cobram US$ 50 por hora de uso.

Outros aproveitam a ex-função para faturar. Desde a queda de Saddam, o barbeiro do Palestine tem tido pouco trabalho. Em compensação, aluga saídas de eletricidade de suas cadeiras para interessados em energia. Há fila de espera.

Uma das frases mais ouvidas é: "A polícia agora sou eu!", no meio de discussões, quando uma das partes ameaça chamar a polícia. Que não existe mais.

As notas de dinar iraquiano, que trazem a efígie de Saddam em todos os valores, desapareceram e viraram item de colecionador. Uma de 10 mil dinares, a mais rara hoje, pode custar até US$ 10. O último câmbio informal antes da queda do regime era de US$ 1 para 3.000 dinares.

Ainda na fronteira jordaniana, o governo obriga o viajante a assinar dois papéis, um eximindo o rei de responsabilidade pela vida de quem se arriscou a entrar no Iraque, outro dizendo que os que forem mortos no caminho não podem processar o reino em busca de indenização.

Do lado iraquiano, os sinais de que os funcionários deixaram o que estavam fazendo pelo meio assim que ouviram da queda de Saddam estão por todos os lugares. Na chamada "sala dos oficiais", onde as propinas eram cobradas para que as bagagens fossem liberadas, um prato repousa sobre a mesa com uma coxa de frango pela metade.

Nosso motorista no trajeto Amã-Bagdá, o terceiro da série, é uma mistura de Nietszche e Raul Seixas. Iussef é jordaniano de origem palestina (como 82% da população, clamam os palestinos; o governo diz que são 42%) e desdenha dos saqueadores. "Que venham, não tenho medo."

Ao dirigir, tem um irritante tique: olha constantemente de um lado para o outro, parecendo estar checando os espelhos. Várias vezes por minuto. Só percebemos que se tratava de uma mania quando reparamos que sua caminhonete não tem espelhos. Quebraram numa das viagens."

Sérgio Dávila é enviado especial da Folha ao Iraque

Juca Varella, fotógrafo, é enviado especial da Folha ao Iraque

 

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