América Latina vive segunda onda cidadã, diz magistrado argentino
Frases agudas e sarcásticas pontuam os discursos de Eugenio Raúl Zaffaroni, 68, ministro da Suprema Corte da Argentina e símbolo do tribunal que derrubou em 2005 as "leis do perdão" que impediam processos contra a maioria dos responsáveis por crimes contra os direitos humanos na ditadura.
"Nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional", diz, sobre a discussão no Brasil a respeito da imprescritibilidade do crime de tortura.
Militante contra a "pretensão de assepsia ideológica" no direito penal, exibiu por que razão é referência entre criminalistas progressistas da América Latina. Atacou defensores da redução da maioridade penal e disse que policiais têm seus direitos violados tanto quanto vítimas e criminosos.
Defendeu que os governos esquerdistas de Bolívia e Equador, que preparam novas Constituições, são parte da "segunda onda de alargamento da cidadania" na região. A primeira veio com o varguismo e o peronismo, aponta.
Zaffaroni falou à Folha em São Paulo, onde esteve na semana passada para falar em um seminário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
FOLHA - No Brasil, setores do governo defendem o fim da lei anistia. Mas críticos dizem que revogá-la é decisão política revanchista.
EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI - As decisões são jurídicas. Se só se trata de julgar fatos políticos, não tem sentido. Mas se houve crimes de lesa humanidade, estimo que nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional. Nossos países assinaram tratados internacionais que o abrigam a isso. No caso argentino, nós reconhecemos essa jurisprudência internacional da Corte Inter-Americana. Hoje estamos julgando cerca de 200 em todos o país, com as dificuldade de fazer processos depois de 30 anos.
FOLHA - Bolívia e o Equador preparam Constituições muito mais detalhistas que as atuais, com diretrizes de política econômica, por exemplo. São esses textos um acertado produto de seu tempo ou Cartas excessivamente políticas fadadas a não ter aplicabilidade?
ZAFFARONI - Toda lei é fruto de um momento político, porque aquilo que está no texto é resultado de uma experiência. Experiência, neste caso, é como foram eludidas as garantias estabelecidas pelas Constituições anteriores. Nós na América Latina temos uma característica que não podemos negar. Somos povos não muito acostumados o respeito às instituições. Por que motivo? Porque à diferença dos países europeus, as nossas leis muitas vezes reconheceram direitos porque foram leis copiadas. Não foram leis que resultaram de lutas, ato de reconhecimento direto. Pegamos a Constituição dos EUA, arrumamos alguma coisa... Quando fizemos nossas Constituições de Repúblicas na verdade tínhamos uma realidade quase feudal. Só resultados de lutas diretas. Depois, a nossa cidadania foi se alargando no curso do século 20 por meio dos movimentos chamados de populismos. E o que são? Movimentos populares, às vezes contraditórios, às vezes autoritários, muitas vezes personalistas, mas que alargaram a cidadania. Perón, Vargas, Marcelo Cardénas...
As instituições não nascem como a lógica que os juristas queriam. Nascem como a política quer. Acho que estamos numa segunda onda de alargamento da cidadania depois de sofrer as conseqüências de uma onda contrária, assassina, genocida. É o momento de pensar como institucionalizar essas desordem. Mas com a consciência de que a desconfiança de nossos povos com as Constituições não é gratuita.
Na questão de política econômica, ela deve ser orientada constitucionalmente, para evitar o que sofremos em vários países nos anos 90.
FOLHA- Na Bolívia, prepara-se uma Carta rejeitada por uma minoria concentrada regionalmente...
ZAFFARONI - A democracia é a lei da maioria. Claro que há limites, há os direitos humanos, não se pode liquidar a minoria... Mas o problema é que temos duas Bolívias. É uma questão econômica, porque a Bolívia de maior arrecadação fiscal não quer dividir com a Bolívia pobre. E no fundo, está o racismo, há o país branco e o índio.
FOLHA - Com a criminalidade como um problema grave na região, cresce o clamor por mais punição, pela diminuição da maioridade penal. O sr. é crítico das duas coisas...
ZAFFARONI - Misturem meninos e adultos nas cadeias. E teremos mais meninos e adolescentes violados. Assim, conseguiram lançar nas ruas jovens com mais ódio, mais frustrados e humilhados. Causará surpresa se se tornam assassinos? Eu não sei se não me tornaria assassino... Talvez os que propõe estas medidas saibam.
A vitimização tem uma distribuição tão injusta como a criminalização, na medida que eu posso pagar segurança pessoal, faço. Então vamos deteriorando as polícias, e o mau serviço fica para os mais pobres, e nem sequer para todos. Então, a vitimização recai sobre os mais pobres. Quando fazemos pesquisas, vemos quanto mais descemos na escala social, mais repressivo fica o discurso. Por quê? Porque têm a experiência da violência. Vitimizados e criminalizados são pobres, além da própria polícia. A idéia é: matem entre si. O controle social age aí.
Mas quem eles querem controlar mais? Os mais jovens, criminalidade não é coisa de velhos. O Estado mata os velhos de outro jeito, tira a Previdência social...
Baixar a maioridade penal é uma coisa que as ditaduras latino americanas fizeram. A Argentina mesmo fez isso. Querem criminalizar toda a adolescência. É verdade que temos adolescentes assassinos, mas a maioria são autores de furtos e roubos, crimes contra a propriedade. Com isso o que vão produzir? Mais criminosos, desta vez com uma carreira, com ginásio antes. A prisão de um menor é muito mais grave do que o do adulto, que tem a personalidade formada. As práticas de crimes sexuais nas prisões tem algo de lenda, mas nos institutos adolescentes não é lenda, é verdade. Do ponto de vista racional, o adolescente sabe o que faz. O cachorro também sabe o que faz. Não é um problema de saber. É um problema de maturidade afetiva.
Depois, há uma grande incoerência. Se quisermos que uma pessoa seja responsavelmente aos 14 anos, por que não civilmente? Para assinar um contrato? Ou votar? Ou escolher a opção sexual? Não, nada disso. Penalmente, sim.
FOLHA- O sr. diz que os policiais militares tem seus direitos tão violados quanto as vítimas. Por que? Por que faz a defesa do direito de sindicalização da categoria?
ZAFFARONI - Estamos pagando menos ao policial do que às empregadas domésticas... Os policiais também são escolhidos entre os extratos mais baixos da população. Vai paras as ruas sem treinamento adequado, mora nos mesmos lugares dos bandidos, é um alvo ambulante. Não tem quase nenhum dos direitos trabalhistas dado a outras categorias. Eles tem de ter direito à sindicalização, não protestar de costas para as câmeras. A polícia é um serviço civil, não tem porque ser militarizado. É uma organização hieráquica? Claro. Na questão da polícia está em jogo a vida e a morte? No hospital também está. A única razão de ser militarizado é que as cúpulas policiais não querem, porque também recebem na ponta o apurado com a propina. Um sindicato poderia denunciar...
FOLHA- Qual sua opinião sobre o uso das Forças Armadas na segurança pública?
ZAFFARONI - As Forças Armadas nunca devem ser usadas na função policial. Devemos melhorar as polícias (pagar-lhes mais e melhor) e não fazer de nossos Exércitos polícias. Se fizermos isso, destruímos as polícias e as Forças Armadas. Cada um com sua função. Por que quem prentende que façamos isso fazem eles mesmo? Por que os EUA não convertem suas Forças Armadas em polícia? Por acaso querem deixar-nos sem polícia nem Forças Armadas?
FOLHA- Há uma discussão na Colômbia sobre a extradição aos EUA de grandes chefes paramilitares. Críticos do governo dizem que, punidos por narcotráfico, eles escapam de serem julgados por crimes contra humanidade. O que sr. opina?
ZAFFARONI - Nos EUA, a política antidrogas passa por um fator especial que é controlar o preço internacional do preço da cocaína. Essa é a função econômica. Como é o principal consumidor, a maior parte do lucro fica nos EUA. O preço de produção é muito baixo. A repressão faz aumentar o preço do serviço de distribuição, não de produção. Quando tiram alguém de um cartel da Colômbia, isso faz subir o preço da cocaína um momentinho. Mas o buraco no mercado é logo preenchido. O chamado crime organizado, é crime de mercado, é o aparecimento de serviços ilícitos. O resto é uma discussão eterna formal... Ninguém quer o fim do negócio. Legalizando a produção e a distribuição, como no caso de álcool, faria cair o preço de maneira vertical, e o negócio cairia. Mas não sei se é uma opção, porque não sei se a economia mundial aguentaria esse baque. A economia ilícita aporta muito. Se tirarmos desses US$ 500 bilhões, a grande parte das drogas, produziríamos uma recessão. O que eu quero dizer é que esse negócio tem uma macrofunção, isso é claro. Os teóricos de Chicago, os Chicago Boys, dizem: pode tirar não acontece nada. Mas os neokeneysianos tem uma opinião diferente. Parece que neste caso resolveram ouvir os neokeneysianos. Ninguém quer resolver.
FOLHA- Então, é sem sentido a discussão sobre punição do usuário, integração regional no combate ao tráfico...
ZAFFARONI - É um negócio tão poderoso... Quem quiser conter o negócio com o poder punitivo, vai receber uma rajada de chumbo ou uma chuva de dólares (risos). Uma das duas será. O poder punitivo não serve para isso. O poder punitivo é o elemento mais corruptível, que nós temos de cuidar sempre.
FOLHA- Mas é uma visão muito sombria, que deixa sem perspectiva uma parte do México devastada pelo narcotráfico, por exemplo...
ZAFFARONI - Uma parte do país devastada pelo tráfico e outra parte com uma concentração de capital que é incrível.
FOLHA - Como teórico da seletividade do sistema penal, como vê o debate no Brasil gerado pelo uso de algemas em banqueiros e políticos?
ZAFFARONI - As garantias sempre avançam porque o poder punitivo atinge um VIP. Mas o poder punitivo não direito a expor ninguém em algemas. Mas neste caso não pode haver VIPs e não VIPs. Essas prisões servem. É como dizer: olha, essa sociedade é igualitária...
FOLHA- Num momento da crise política com o campo, na Argentina, o sr. foi à imprensa dizer que a Corte Suprema não poderia decidir um tema que a política não tinha dado conta. Como sr. analisa a crise?
ZAFFARONI - Essa última crise foi política, um erro, não tem nada de econômica. Foi a primeira vez na história da Argentina. Há algumas ameaças, como inflação, mas economicamente vamos bem. O sistema político que não tem oposição. Debilita o poder, mas fortalece alguém? A oposição vai vir de dentro do peronismo. Como sistema, não temos um partido de alternância. Não tendo oposição, a política é um carro sem velocímetro.
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