Terror na Noruega: A utopia acabou
Uma chuva fina caía de um céu carregado, combinando com o estado de ânimo prevalecente, enquanto milhares de pessoas faziam fila para assinar um livro de condolências na Universidade de Oslo, na segunda-feira. "A Noruega mudou para sempre no instante em que a bomba explodiu", disse Susanne Jørgenstuen, estudante que esperava para assinar seu nome. Mais tarde, multidões de pessoas carregaram flores em reuniões silenciosas, marcadas por lágrimas, nos centros de várias cidades, em memória dos mortos no massacre da sexta-feira.
Em meio à tristeza e à raiva, também há perplexidade --que não se limita aos noruegueses. A Noruega e outros países escandinavos frequentemente são vistos como sociedades exemplares. Agora, muitos vão indagar se, debaixo da superfície reluzente, existe algo de sombrio e tóxico que deu lugar a um ódio tão grande. Ou ataques como o da sexta-feira seriam igualmente possíveis em outros países?
Para Jørgenstuen, "provavelmente a maior surpresa" foi o fato de Anders Behring Breivik, o atirador confesso, ser norueguês. "Mas talvez seja melhor assim. As consequências teriam sido muito piores se tivesse sido um terrorista islâmico. Chego a estar feliz porque foi um norueguês."
Para Siv Jensen, líder do oposicionista Partido do Progresso, esse sentimento de alívio não existiu. Na manhã do sábado ela foi informada que Breivik foi filiado ao partido dela entre 1999 e 2006 e que exercera papéis de liderança na divisão local de Oslo do partido. Em entrevista coletiva na segunda-feira, em tom de forte emoção, Jensen descreveu o horror que sentiu diante da conexão com Breivik.
Ao mesmo tempo ela procurou minimizar a atuação passada dele, dizendo que os funcionários na divisão em que Breivik atuou mal se lembravam dele. "Ele era um sujeito quieto, que falava pouco", ela disse. "Não havia indício dessas posições extremistas, e, se houvesse, ele não teria sido permitido no partido."
Segundo maior agrupamento no Parlamento, o Partido do Progresso insiste que difere dos partidos nacionalistas e anti-imigração que vêm conquistando ganhos na região nórdica e outras partes da Europa. Diz que suas posições "liberais clássicas" guardam mais relação com o Partido Conservador britânico que com o Partido Democrata sueco, de extrema-direita, com o
Partido dos Verdadeiros Finlandeses ou com o Partido do Povo Dinamarquês.
Jensen, que fez grandes esforços para suavizar o populismo áspero de seu partido, diz que a pior coisa que poderia acontecer após os ataques da sexta-feira seria a Noruega suprimir a discussão sobre a imigração e outras questões sociais difíceis. "A melhor maneira de combater ideias nocivas e radicalismo é um debate aberto", disse ela. "Se você defende a liberdade de expressão, precisa aceitar que pessoas digam coisas nocivas, mas acho que é muito melhor dizerem coisas nocivas do que fazerem coisas nocivas."
O fato de Breivik ter sido membro do Partido do Progresso provocou uma discussão sobre a possibilidade de a posição intransigente do partido com relação à imigração ter ajudado a criar condições em que o radicalismo de extrema-direita pudesse florescer. Perguntas semelhantes estão sendo articuladas em toda uma região frequentemente associada à tolerância e democracia social, enquanto ela enfrenta as tensões sociais e políticas geradas pela imigração crescente vinda do mundo muçulmano.
Na fila das condolências, porém, algumas vozes eram favoráveis à distinção que o Partido do Progresso está tentando traçar. Outro que aguardava na fila era Manhar Harmansen, consultor sênior no Centro de Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade de Oslo. Originário de Uganda, ele vive na Noruega há 39 anos. "A Noruega é conhecida em todo o mundo pela liberdade e a democracia", disse ele. "Esta vai ser uma Noruega diferente, mas acho que isso não vai ou não deve causar impacto sobre o Partido do Progresso. Ele não tem nada a ver com isto."
Além dos partidos democráticos da direita populista, a Escandinávia abriga uma margem extremista mais problemática. Embora muitos conheçam o lado mais sombrio da vida escandinava moderna pelos livros policiais de Stieg Larsson, o autor sueco que morreu em 2004 passou boa parte de sua vida profissional monitorando a extrema-direita, como editor da revista antirracismo "Expo". Quando ela foi criada em 1995, a extrema-direita era vista como a maior ameaça violenta à Suécia. De fato, nos anos seguintes houve uma onda de ataques de neonazistas suecos, incluindo um atentado com carro-bomba contra um jornalista que tinha investigado o movimento supremacista branco.
Mas, após os ataques de setembro de 2001 aos Estados Unidos, a atenção foi deslocada para o extremismo islâmico. Uma série de conspirações de terroristas muçulmanos na região nórdica reforçou a mudança de foco. Johannes Jakobsson, repórter da "Expo", diz que, apesar disso, a ameaça da extrema-direita nunca chegou a desaparecer. "Estamos tentando há anos transmitir às pessoas que o perigo ainda estava presente. Lamentavelmente, ficou provado que tínhamos razão."
Jakobsson disse que há pouca dúvida que as opiniões de Breivik encontram eco em outros países e que alguns grupos continuam a demonstrar intenção violenta. Em 2008 a polícia sueca apreendeu dinamite e outras armas numa invasão da sede do neonazista Movimento de Resistência Sueca. O serviço de segurança sueco diz que está procurando quaisquer vínculos possíveis entre Breivik e extremistas suecos e que enviou oficiais à Noruega para participar da investigação e colher informações.
Até a sexta-feira passada, poucas pessoas fora da Noruega tinham ouvido falar da ilhota arborizada de Utøya, onde há décadas a ala jovem do Partido Trabalhista norueguês promove seu acampamento anual de verão. Uma busca pelo nome no Google trouxe a resposta: "Você quer dizer Utopia?".
Foi uma sugestão estranhamente apropriada, em vista do cenário tranquilo da ilha nos arredores de Oslo e do fato de, a cada verão, ela receber a próxima geração de ativistas e líderes do
Partido Trabalhista, de quem se espera que carreguem adiante a tocha da social-democracia norueguesa.
Entre os organizadores do acampamento estava Khamshajiny Gunaratnam, 23 anos, ex-vereadora em Oslo e ex-presidente da juventude trabalhista na capital. Gunaratnam estava tomando conta da loja do acampamento quando foram ouvidos os primeiros disparos. Depois de se esconder num bloco de banheiros, ela correu até a beira da água e nadou quase todo o trajeto até o continente --500 metros-- antes de ser resgatada por uma embarcação. Outras pessoas que estavam nadando perto dela ou logo atrás dela não sobreviveram. Gunaratnam não sabe se elas receberam tiros ou se afogaram.
A descida apressada por uma encosta rochosa, para chegar à água, deixou cicatrizes visíveis sobre os braços dela. "Acho que esse cara está mal, e sinto pena dele", ela fala, aludindo ao atirador, mas acrescenta que os políticos precisam questionar de que modo podem ter contribuído para moldar a visão de mundo de Breivik.
Com outras pessoas da esquerda, Gunaratnam critica o Partido do Progresso por seu discurso hostil sobre a imigração. "Os políticos precisam ter mais consciência do que falam e do efeito que isso pode ter." Mas ela diz que todos os políticos precisam dividir a responsabilidade pelas divisões sociais entre comunidades imigrantes e os noruegueses étnicos, que alimentaram tensões dos dois lados.
Em nenhum lugar a divisão é maior que em Oslo, onde estima-se que 28% da população tenha nascido fora do país. "Temos o lado ocidental, que é próspero e branco, e o lado oriental, pobre e multicultural", disse Gunaratnam, que foi levada do Sri Lanka, seu país de origem, à Noruega aos 3 anos de idade. "As pessoas do lado ocidental vivem dez anos mais que as do lado leste."
Como é o caso na maioria dos países ocidentais, a parcela da população norueguesa que tem origem imigrante vem subindo fortemente nas últimas três décadas. Cerca de 600 mil pessoas na Noruega ou nasceram no exterior ou têm pais nascidos no exterior. Isso representa cerca de 12% da população. Quase metade vem da Europa.
Desde a década de 1980, porém, o aumento tem sido maior no caso dos imigrantes da Ásia, África e América Latina. Acredita-se que mais ou menos 3% da população da Noruega seja de muçulmanos. Esses números sugerem que a Noruega tenha menos habitantes de origem não ocidental que os países vizinhos.
Na segunda-feira, pessoas enfurecidas gritaram e deram socos no carro que se acreditava estar levando Breivik para sua audiência em um tribunal de Oslo. Pelo menos essa parte de seu esquema não saiu conforme ele planejara: ele teve negado seu pedido de usar um uniforme e depor em tribunal aberto. A audiência foi fechada ao público.
Mesmo assim, algumas das ideias do suspeito foram transmitidas pela leitura da decisão da corte pelo juiz Kim Heger. Este disse que Breivik declarou que o objetivo de sua ação foi desferir um golpe contra o Partido Trabalhista, que teria traído a Noruega com "uma importação maciça de muçulmanos".
Outro objetivo, porém, foi evidentemente chamar atenção para as ideias de Breivik, expostas em um manifesto de 1.500 páginas postado on-line horas antes do atentado a bomba na sexta-feira. "Breivik representa um ramo especial da ideologia de extrema-direita", diz Thomas Hegghammer, especialista em terrorismo no Estabelecimento Norueguês de Pesquisas da Defesa. "Não é um supremacista branco. Ele não considera a raça algo tão importante assim, razão pela qual não ingressou nos grupos mais estabelecidos. As sociedades que ele vê como sendo exemplares são o Japão e a Coreia do Sul. E ele tampouco é nacionalista nórdico --é mais uma espécie de nacionalista pan-europeu."
Breivik parece ser obcecado pelas batalhas medievais entre a cristandade europeia e o islã. Seu documento é intitulado "2083: Uma Declaração de Independência Europeia", referência ao 400º aniversário do cerco turco de Viena. Ele se apresenta como uma espécie de cavaleiro cristão, e o manifesto discute os escalões, as medalhas e as insígnias de uma ordem "conservadora cultural" de soldados que lideraria uma nova batalha contra o islã.
"Seria fácil pensar que alguém imaginaria estar reativando uma ordem militar medieval, ascética e escatológica", diz Paul Berman, acadêmico da Universidade de Nova York e autor de um livro que compara o islamismo extremista com as ideologias totalitárias europeias. "Isso tem sido o sonho de um grupo depois de outro. É a ideia jihadista; à sua própria maneira, é a ideia nazista, e Franco e Mussolini propuseram variações sobre ela", ele diz. "Wagner já o tinha feito com 'Parsifal'."
Hegghammer enxerga paralelos com as ideologias terroristas islâmicas. Uma semelhança que chama a atenção é a glorificação do martírio. Além disso, tanto Breivik quanto grupos como a Al Qaeda "afirmam representar queixas que de fato são amplamente compartilhadas" em suas respectivas sociedades --a situação dos palestinos no mundo muçulmano ou a influência crescente do islã na Europa. "Mas eles propõem uma solução que é completamente inaceitável para quase todos os que eles afirmam representar."
Um eco disso pôde ser ouvido nas palavras de Bjørn Bekkevold, um empreendedor de informática, de meia-idade, depois de ele ter acendido uma vela diante de uma igreja de Oslo em memória dos mortos da sexta-feira. "É evidente que Breivik refletiu sobre isso durante muitos anos. O manifesto é interessante, como reação contra a política reinante na Noruega e na Europa, mas sempre é errado recorrer à violência. É importante trazer estas questões à tona e debatê-las a fundo, para que não resultem em um movimento underground potencialmente violento."
Semelhanças entre Ted Kaczynski --o chamado "Unabomber" que aterrorizou os EUA entre 1978 e 1995-- e Anders Behring Breivik vêm sendo apontadas desde que Breivik publicou seu manifesto on-line, pouco antes dos ataques na Noruega. O manifesto incluiu trechos cortados e colados do manifesto de Kaczynski, este um recluso que procurou oferecer uma justificativa ideológica de seus ataques com bombas enviadas pelo correio, que deixaram três mortos. A "discussão da psicologia do esquerdismo" feita por Kaczynski é copiada por Breivik, embora este fale em "marxismo cultural" e "multiculturalismo". Mas o manifesto de Breivik não é todo fruto de plágio. "Uma boa parte é formada por texto dele próprio", diz Thomas Hegghammer, especialista em terrorismo.
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