Caso Nisman resume problemas institucionais da Argentina
Quase quatro meses depois da misteriosa morte do promotor Alberto Nisman, que havia denunciado a presidente Cristina Fernández de Kirchner, e após o governo surpreendentemente esquecer a promessa de investigar o que aconteceu, o caso voltou ao centro das discussões na Argentina e isso acontece a só quatro meses das eleições presidenciais.
Marcos Brindicci - 29.mai.2013/Reuters |
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O promotor argentino Alberto Nisman |
No programa jornalístico mais famoso da TV argentina, "Periodismo para Todos", do jornalista Jorge Lanata, os argentinos viram um vídeo da cena do crime –que Lanata definiu como assassinato– que demonstra a inépcia e a contaminação de provas a poucas horas de morte de Nisman.
A promotora que pisa o sangue do colega morto com suas sandálias. A pistola ensanguentada que um perito limpa sem razão alguma com papel higiênico e que perde impressões digitais a serem investigadas.
Muitíssima gente no local, às vezes tocando em provas sem luvas. Além disso, a intromissão de um importante funcionário do governo –o secretário de Segurança, Sergio Berni– nos primeiros momentos da investigação.
Berni chegou antes da promotora Viviana Fein, responsável pelo caso, e disse ter ido ao local para preservar a cena do crime. Também se soube que foram usados três pen drives no computador do promotor oito horas após sua morte, mas horas antes da chegada da polícia a seu apartamento.
O vídeo é um sintoma dos problemas institucionais da Argentina: falta de divisão de poderes, falta de seriedade e crimes que ficam impunes.
Reprodução | ||
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Perito segura arma encontrada em local da morte do promotor Alberto Nisman |
Nisman foi encontrado morto em 18 de janeiro, um dia antes de ter prometido entregar provas ao Congresso sobre a responsabilidade da presidente no encobrimento da investigação do atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), no qual morreram 85 pessoas em 1994.
Ele havia prometido provas da suposta intenção presidencial de oferecer a "inocência" aos acusados iranianos em troca de petróleo. Sua morte impediu que isto acontecesse, mas o crime continua definindo a política argentina e a falta de justiça.
O retorno do caso Nisman às capas dos jornais argentinos surpreende não tanto pela volta de uma notícia que definiu o verão argentino como uma crise de época, mas por sua prolongada ausência nos debates entre os principais candidatos presidenciais.
Os candidatos governistas preferem o silêncio talvez para não ter que explicar a morte misteriosa e a inação do governo que promoveu o descrédito da investigação feita por Nisman e fazer uma campanha de difamação pública do morto como se sua vida pessoal tivesse algo a ver com suas denúncias.
Inclusive, o governo chegou a sugerir que a imprensa, em particular o jornal "Clarín", estava relacionada com uma conspiração para manipular o promotor e prejudicar o governo. Concretamente, falar da morte era para o governo uma estratégia opositora.
Mais surpreendente ainda é a falta de interesse entre os presidenciáveis opositores mais bem posicionados nas pesquisas: os conservadores Mauricio Macri (direitista e próximo ao peronismo conservador) e Sergio Massa (peronista opositor).
Apenas a candidata progressista Margarita Stolbizer falou sobre o tema. Mas, em geral, para os políticos governistas e opositores, o caso Nisman não parece ser um tema importante como também não parece ser relevante a relação central com Brasil, Uruguai, Estados Unidos ou a comunidade europeia.
As eleições presidenciais argentinas parecem se definir pelo interesse dos candidatos populistas do governo e da oposição de se denegrirem mutualmente, aparecerem na televisão contando piadas ou dançando.
A falta de programas ou ideias define uma campanha presidencial muito argentina, em que as questões de Estado e de Justiça não são tema de discussão.
A morte de Nisman também se insere como símbolo e como sintoma em uma longa história argentina. Tradicionalmente, os argentinos não confiam no Estado e muito menos em seus governantes.
O que acontece no mundo oficial, independentemente de quem sejam seus governantes, é motivo de suspeita por parte de uma sociedade civil rica em contradições cidadãs. Uma sociedade muitas vezes sofisticada que reclama de seus políticos, mas vota neles, se resigna e dá as costas ao Estado.
Já escrevia o escritor Jorge Luis Borges em 1946: "O argentino não se identifica com o Estado. A isso podemos atribuir o fato de que, neste país, os governos costumam ser péssimos ou o fato geral de que o Estado é uma abstração inconcebível. O que é certo é que o argentino é um indivíduo, não um cidadão".
Seguindo o raciocínio, Borges acrescentou que os argentinos acreditam justamente na existência de um herói solitário que, vindo do Estado, luta contra a injustiça e as forças oficiais.
A realidade é com certeza mais complexa que as simplificações e estereótipos de Borges. Mas na Argentina de hoje muitos parecem dividir a imagem de um solitário que, surgido nas filas estatais, promete lutar contra a injustiça oficial e contra uma elite que detém o poder.
Como disse Borges, esta é com certeza a figura do herói argentino por antonomásia. O gaúcho Martín Fierro e outros ícones argentinos dão força a esse sintoma dividido de falta de justiça. Um sintoma em que parecem se inserir a morte de Nisman e as eleições presidenciais.
FEDERICO FINCHELSTEIN é diretor do Departamento de História da New School for Social Research e do Lang College em Nova York
Tradução de DIEGO ZERBATO
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