Artista tunisiano faz mural gigante em homenagem a bairro pobre do Cairo
David Degner/The New York Times | ||
Mural pintado em mais de 50 edifícios pelo artista tunisiano eL Seed em bairro da periferia do Cairo |
Em Manshiyat Naser, na periferia do Cairo, as construções não estão pintadas. Estão todas com o tijolo exposto, empoeiradas e sem decoração. Mas, em uma ruela coberta de lixo, surge uma casa branca. Mais adiante, uma alaranjada e outra azul.
Vistas de perto, as casas não significam muito. Mas, visto de longe, o conjunto de 50 construções espalhadas pelo bairro formam um complicado desenho pintado pelo artista franco-tunisiano eL Seed, homenageando essa região periférica da capital.
O trabalho foi realizado em um bairro conhecido por ser o lar de comunidades de lixeiros, em geral coptas (ramo egípcio do cristianismo). O mural foi iniciado no ano passado e concluído há duas semanas. As casas formam uma frase, desenhada em caligrafia, atribuída a um bispo copta do século 3: "Se alguém quiser ver a luz do Sol com clareza, precisa esfregar os olhos antes".
A Folha visitou o bairro de Manshiyat Naser na quarta-feira (30). Os primeiros moradores questionados não souberam dizer exatamente onde estavam os desenhos. Mas, ao se aproximar do centro dessa região, semelhante a uma favela, a reportagem foi encaminhada a uma das construções pintadas por eL Seed e equipe.
"Muitas pessoas têm vindo aqui para ver o grafite", diz Andro Adel, 17, que trabalha em um mercadinho local. Garçom na cafeteria Qasr al-Shuq, Ahmad Naser, 23, conta que os artistas envolvidos no projeto se integraram bem à comunidade. "Eram agradáveis, mas, quando acabou, foram embora", diz.
Os moradores ouvidos pela reportagem, no entanto, não pareciam conhecer o significado exato da caligrafia de eL Seed. O analfabetismo, no Egito, chega a 25,9% dos cidadãos maiores de dez anos. Um dos clientes do café sugeriu que o desenho nas casas era "uma homenagem à civilização egípcia".
David Degner/The New York Times | ||
Mural pintado em mais de 50 edifícios pelo artista tunisiano eL Seed em bairro da periferia do Cairo |
O artista não respondeu aos pedidos de entrevista da Folha. Em seu site oficial, eL Seed —conhecido pela mistura de caligrafia com grafite, a "caligrafite"— escreveu que pensou o projeto "Percepção" como um questionamento à desinformação em relação a diferentes comunidades em uma sociedade.
Os moradores de Manshiyat Naser são, afinal, discriminados no Egito devido ao seu trabalho com o lixo. Entre outras de suas iniciativas, eL Seed pintou também dentro do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro.
CRIATIVIDADE
Manshiyat Naser está a meia hora de carro do centro do Cairo. Moram ali 260 mil pessoas, em uma região com carência de serviços básicos. Há, nos arredores, uma igreja construída em uma caverna, uma espécie de ponto turístico entre as pilhas de lixo.
A Associação para a Proteção do Ambiente, liderada por Suzie Greiss, trabalha nessa região apoiando os moradores desde 1984. Ela diz que, ainda hoje, há carência de projetos artísticos no bairro. Um de seus projetos futuros é abrir galerias para exibir obras locais.
"É importante que uma cultura se expresse artisticamente", diz Greiss. "Os moradores de Manshiyat Naser são criativos, quando têm a oportunidade. Mas eles não tiveram educação, e seus empregos coletando lixo são os mais baixos o possível."
Diante do mural de eL Seed, Greiss afirmou que a obra é "inspiradora". O trabalho foi recebido com elogios na imprensa local, e foi relatado também pelo "New York Times" como uma ação sem precedentes no país.
David Degner/The New York Times | ||
Mural pintado em mais de 50 edifícios pelo artista tunisiano eL Seed em bairro da periferia do Cairo |
O grafite tem forte relação, no Egito, com os movimentos populares de 2011 que derrubaram o então ditador Hosni Mubarak. Desde então, e por vezes reprimidos pelo governo, artistas têm ido às ruas para manifestar-se. A icônica galeria local Townhouse, por exemplo, realizou uma exposição de grafite há alguns anos.
PERSPECTIVA
A reportagem da Folha caminhou pelo bairro durante o dia, em busca da perspectiva em que é possível ver todo o desenho. O artista eL Seed projetou essa ilustração para ser vista de um ponto específico, em uma montanha árida dos arredores.
Como uma criatura fantástica, a caligrafia se formava aos poucos, e depois se desfazia, de acordo com o ângulo. Somente em uma igreja, no topo desse bairro, era possível ter uma ideia mais nítida do conjunto da obra.
"É para ver da estrada, e não aqui dentro", diz Rabih Anwar, 24, catador de lixo.
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