Após casamentos forçados, refugiadas têm futuro sombrio no Iraque
Na foto que Aziza mostra em seu celular, Layla, sua filha de 14 anos, usa um vestido rosa de cetim e sorri docemente para a câmera.
"Foi sua festa de noivado", diz Aziza, 35. "[O noivo] tinha 22 anos. A família dele nos procurou diversas vezes para pedir a mão de nossa filha. Da terceira vez, aceitamos".
Safin Hamed/AFP | ||
Mulher prepara pães para crianças e adolescentes em um campo de refugiados da ONU no Iraque |
No começo, Aziza e os pais do jovem noivo enfrentaram dificuldades para convencer o casal a aceitar o arranjo, mas quando eles o fizeram os preparativos para a cerimônia não demoraram a ser iniciados.
Não era primeira proposta matrimonial recebida por Layla. Os pais da menina haviam rejeitado muitas propostas em Mossul, a cidade de origem da família, antes de fugirem diante da campanha do Estado Islâmico para capturar a segunda maior cidade do Iraque, em 2014.
Desde então, Aziza, seu marido e os seis filhos do casal estão refugiados na região norte do Iraque, de maioria curda, como parte do milhão de refugiados iraquianos vivendo em acampamentos depois de serem forçados pelo conflito a deixar suas casas.
"Recusei em Mossul porque não queria que ela se casasse antes de terminar a escola. Aqui no campo de refugiados, ela se viu pressionada a aceitar", disse Aziza.
Os nomes da mãe e da filha foram mudados para proteger sua identidade, por medo das repercussões que a história pode causar em sua comunidade.
Meninas se casando não é incomum no Iraque —Aziza mesma tinha 16 anos quando se casou com o pai de Laila— mas a incerteza sobre o futuro em um país dilacerado pela violência e as dificuldades econômicas torna casamentos prematuros mais comuns.
No mundo, mais de 700 milhões de mulheres se casaram antes do 18º aniversário, de acordo com um relatório da Unicef em 2014. Mais de uma em três delas se casaram antes dos 15 anos.
Embora a idade mínima para casamento seja de 18 anos no Iraque —15 com o consentimento dos pais—, estatísticas da ONU demonstram que quase 20% das mulheres do país se casaram antes dos 18 anos.
"PROTEÇÃO"
Trabalhadores assistenciais em campos de refugiados e pessoas desabrigadas viram alta no número de casamentos de crianças, e dizem que muitos pais esperam que suas filhas fiquem mais protegidas contra agressões ou violência sexual caso estejam casadas.
Outros estão desesperados por escapar à pobreza e veem o preço de uma noiva ou o dote de um casamento como forma de obter dinheiro que pode beneficiar outros membros da família.
A educação insuficiente é outro fator que pressiona nesse sentido. No Iraque, as meninas só ficam na escola até os 10 anos de idade, em média, de acordo com a organização assistencial Save the Children.
"Antes [do conflito] elas tinham futuro... agora precisam se casar já aos 12 anos porque seus pais acreditam que caso se casem estarão seguras", disse Rezhna Mohammad, diretor de serviços psicológicos da SEED, uma organização assistencial local, à Thomson Reuters Foundation.
A falta de privacidade nos campos de refugiados, o que inclui latrinas e chuveiros compartilhados, significa que mulheres e meninas ficam expostas a homens de fora de seu círculo familiar.
"Eles querem que as mulheres sejam protegidas - proteção moral e social. E dizem que o casamento é proteção", disse Mohammad, acrescentando que "para os iraquianos desabrigados, as razões econômicas têm o maior impacto —não lhes resta coisa alguma, nem mesmo seus documentos de identidade".
Ao permitir que uma filha se case, os pais confiam suas responsabilidades paternas ao noivo e à família deste, que são obrigados a acolher a noiva como parte de seu domicílio.
No entanto, isso muitas vezes a isola de sua família e amigos, especialmente se o marido vive em outro campo de refugiados ou cidade, o que cria ainda outro trauma em sua experiência, dizem especialistas em direitos da mulher.
FELIZES PARA SEMPRE?
O casamento prematuro não só priva as meninas de educação e oportunidades como aumenta o risco de morte ou lesões no parto, se elas tiverem filhos antes que seus corpos estejam preparados.
"Às vezes elas não podem amamentar, e não sabem como se conectar com o bebê, e por isso outros familiares precisam cuidar do bebê, o que cria tensão na família", disse Mohammad. "O status [da menina] como mãe e cônjuge é comprometido. Ela sente ser um fracasso e não sabe por que não consegue fazer aquilo que supostamente deveria".
Safin Hamed/AFP | ||
Família de refugiados descansa em um campo da ONU em Debaga, no norte do Iraque |
As meninas que se casam ainda na infância muitas vezes são privadas de todo poder e correm risco ampliado de violência doméstica, sexual e HIV, dizem ativistas.
Para Abdul Wahed, psicólogo da organização assistencial Terre des Hommes, os casamentos na infância são muitas vezes vistos como ritos de passagem, pelos iraquianos. "Quando perguntamos por que eles casam seus filhos, a resposta é que esse é o costume, e que eles também se casaram naquela idade", disse Wahed.
Para Layla, que tem 16 anos agora, a ameaça de deixar a tenda da família nunca se concretizou. Aziza e o marido mudaram de ideia e cancelaram o noivado. "No começo, meu marido foi pressionado e aceitou, mas depois do noivado, mudou de ideia", disse Aziza.
Desde que o noivado foi rompido, diversos homens foram à tenda de Aziza para pedir Layla em casamento. Um deles ofereceu US$ 4.000 à família pela mão da adolescente, mas sua oferta foi recusada. "Prometi a mim mesma que ela não se casará antes de terminar a escola", disse Aziza.
"A educação é importante. Eu não tive educação, mas pelo menos posso ajudar minhas filhas a se educar. Quero que terminem a escola e se tornem engenheiras ou médicas".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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