Repórter trabalhou por um dia na campanha de Hillary; leia o relato
Num dos escritórios de Hillary Clinton em Nova York, o sentimento é de gratidão pelo republicano Donald Trump. "Ele facilita muito nosso trabalho", comenta Amanda, 25, voluntária da campanha democrata.
Um dia antes, o "Washington Post" publicara vídeo em que o empresário se vangloriava de pegar garotas "pela xoxota", sem consentimento. Ao longo da semana, mulheres acusariam Trump de assédio (em geral, tentativas de beijá-las à força).
Para o time que ajuda a ex-primeira-dama que luta para ser a primeira mulher na Casa Branca, Trump é o adversário dos sonhos. "O lema lá é 'Should I Stay or Should I Go'", outro rapaz brinca, comparando a letra do Clash ("devo ficar ou ir embora") com o impasse entre líderes republicanos sobre abandonar ou não seu presidenciável.
Nicholas Kamm - 19.set.2016/AFP Photo | ||
Voluntários trabalham em escritório de campanha de Hillary em Charlotte, na Carolina do Norte |
Se fosse outro competidor, ele admite, os democratas poderiam estar encrencados. Hillary, afinal, está longe de ser a candidata ideal.
Ela é vista como "mais do mesmo", parte de uma elite política que os americanos começam a rejeitar, e também como desonesta por 70% da população. A má fama é alimentada pela ideia de que ela sempre está escondendo algo.
Às vezes, por usar um e-mail privado quando trabalhava como secretária de Estado —e apagar 33 mil mensagens antes de o FBI pedir que entregasse o conteúdo para investigação. Em outras, por não divulgar discursos remunerados que deu para bancos como o Goldman Sachs.
Seu oponente nas prévias democratas, Bernie Sanders, chegou a ironizar: "Devem ser uma prosa shakespeariana". O site WikiLeaks vazou e-mails de seu chefe de campanha que reproduzem trechos das palestras, como uma para o Itaú, em 2013.
"Meu sonho é um mercado comum no hemisfério, com livre comércio e fronteiras abertas", disse Hillary então. Como candidata, ela adota retórica anti-acordos internacionais, num momento em que a maioria dos EUA os culpa por levarem empregos para outros países.
VELHINHOS
É essa "impopular, mas necessária" candidata, como define Amanda, que eu defendo durante uma tarde, numa das filiais da campanha em Manhattan, três semanas após ter feito o mesmo por Trump. Não me identifico como jornalista e uso nomes falsos para preservar a identidade dos meus colegas voluntários.
O time democrata não exige contratos (no QG de Trump, precisei assinar um me comprometendo a não "humilhar ou menosprezar" o candidato, sua família ou empresas.
Se a campanha republicana é criticada pelo planejamento deficitário, aqui tudo é pensado nos mínimos detalhes. A tarefa do dia é ligar para a base democrata em Iowa que votará à distância, em geral por correspondência. Muitos são velhinhos com problemas de locomoção.
Meu primeiro contato, Pearl, 99, é também meu primeiro fora eleitoral: "Já estou muito velha para estas crianças [Hillary e Trump] me convencerem de qualquer coisa".
Mais receptiva, Juanita, 92, diz que está emocionada em votar numa mulher pela primeira vez. Pergunto se é hispânica, e a filha de alemães explica que seus pais a batizaram assim devido a uma antiga balada espanhola.
SR. BOM CARMA
Enquanto ela cantarola na linha, um latino cadeirante, que divide a bancada comigo e com uma senhora de 70 anos, aponta para uma cartolina na parede. O cartaz "minha melhor ligação foi" empilha papos de voluntários com eleitores, transcritos com canetinhas coloridas.
Um deles telefonou para o Sr. Good Karma, ou Carma Bom, em português ("melhor sobrenome!!!"). Outro lembrou que Iris, de New Hampshire, recomendou o que fazer com o voto ("enfia onde o sol não bate").
E teve o eleitor que prometeu votar em Hillary porque "é ela ou o oompa-loompa", comparando Trump aos ajudantes alaranjados de "A Fantástica Fábrica de Chocolate".
O discurso do medo —no caso, de um presidente Trump— é abertamente usado para convencer as pessoas a irem às urnas. Como o voto não é obrigatório, as campanhas temem que o povo desista de sair de casa, desiludido com o baixo nível da corrida travada entre candidatos rejeitados por mais de 50%.
Hillary trabalha para suavizar sua imagem, tida como robótica demais. Na semana passada, deu uma entrevista a uma garota de 11 anos, publicada na revista "Elle". Falaram sobre a vez em que a política, então no colégio, tentou disfarçar um corte de cabelo desastroso usando um rabo de cavalo falso. "Um amigo acidentalmente o puxou na frente de todo mundo, foi um pesadelo."
Também contou que, no ensino médio, concorreu a presidente da classe e perdeu. Um colega a chamou de "muito estúpida" por achar que uma garota venceria. "Mas o garoto que ganhou me chamou para chefiar um comitê. Ou seja: ele era o presidente, mas o trabalho pesado era meu."
Outra estratégia é reforçar o caráter histórico da eleição, já memorável ao ter a primeira presidenciável mulher por um dos dois principais partidos dos Estados Unidos.
Por toda parte há menções à "madame presidente" e também a seu marido e ex-presidente, Bill Clinton —como no desenho de um sapato vermelho e um projeto de lei, seguido pela legenda: "Só porque você usa salto alto não significa que você não pode assinar leis [bills, em inglês] e administrar a Casa Branca com Bill".
Outro trocadilho brinca com a expressão "hell, yeah" (literalmente, "inferno, sim", mas que em inglês funciona como "pode apostar"), que vira "Hill, yeah".
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