Decisão política deveria vir dos que têm conhecimento, diz filósofo
Reprodução/Libertarianism.org | ||
O filósofo americano Jason Brennan, professor da Universidade Georgetown |
A ascensão política de Donald Trump nos EUA, a decisão britânica de deixar a União Europeia e a definição contrária ao acordo de paz na Colômbia têm sido elencadas como exemplos de uma crise da democracia global e dos sistemas de representação política.
O índice de democracia da consultoria Economist Intelligence Unit mais recente, divulgado em janeiro, já indicava uma "era de ansiedade", em que o sistema de governo popular sofre uma série de reveses pelo mundo.
Para o filósofo americano Jason Brennan, os três casos são símbolo de problemas na tomada de decisões políticas. Esses impasses favorecem a participação das pessoas em detrimento do conhecimento que elas têm sobre a realidade em questão –o que leva, segundo ele, a escolhas irracionais.
Este é o caso específico do "brexit", na visão de Brennan, em que as pessoas tomaram "uma decisão estúpida" porque não tinham informações sobre a realidade britânica. E é o modelo que aproximou Trump da Presidência dos EUA, apesar de fazer campanha com pouco apego a fatos reais e mentir em 71% das suas declarações, segundo o site PolitiFact, que checa discursos políticos.
Posturas críticas da elite intelectual ao funcionamento da democracia e à participação da população "ignorante" são quase tão antigas quanto o próprio sistema de governo, mas voltam a ter destaque por causa da crise de representatividade que parece disseminada pelo mundo –além dos exemplos citados acima, há a dificuldade de formação de um governo na Espanha, a crise política na Grécia e até mesmo o processo de impeachment no Brasil.
Em entrevista à Folha, por telefone, Brennan falou sobre suas críticas aos sistemas democráticos, reunidas no recente livro "Against Democracy" (contra a democracia, Princeton University Press, US$ 23,25), em que sugere a implementação de um sistema político diferente: a epistocracia. Ele defende que apenas uma elite com conhecimento aprofundado sobre temas de relevância nacional possa tomar decisões.
Criticado por sua visão de mundo "elitista", ele diz que a democracia ainda é o melhor sistema de governo, mas que isso não significa que não precise evoluir.
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Folha - O senhor é um forte crítico das falhas da democracia, e em 2016 o mundo viu a ascensão de Donald Trump nos EUA e decisões controversas em plebiscitos como o "brexit" e o do acordo de paz na Colômbia. Há alguma relação entre esses três casos?
Jason Brennan - Sim, aparenta haver uma conexão entre esses casos. Em diferentes países há uma divisão que parece ir além da tradicional entre direita e esquerda.
É mais uma questão de eleitores rurais discordando do que está sendo proposto por eleitores urbanos e vice-versa. São desconexões econômicas que geram percepções diferentes a respeito da realidade vivida e faz com que eles votem de forma fundamentalmente diferente.
O motivo pelo qual decisões democráticas são fundamentalmente uma questão de justiça é porque são impostas a toda a população. O monopólio das tomadas de decisões é a própria natureza da política.
Em seu livro, sua posição vai além disso, indicando que, na democracia, as decisões são tomadas de forma irracional.
É inevitável que, na política, haja o monopólio das tomadas de decisão, mas isso vem com algumas responsabilidades. Quando falamos sobre decisões que são impostas involuntariamente e que envolvem alto risco, para que as decisões sejam justas e legítimas, elas devem ser tomadas de forma competente e com boa fé.
Isso significa que é preciso que a pessoa tomando as decisões precisa ter conhecimento dos fatos relevantes, entender a importância desses fatos e processá-los de forma racional.
Como a democracia pode ser mais racional?
Uma forma de ilustrar isso é pensar em um julgamento de um assassinato. O júri deve ao réu e à população que representa a seriedade na tomada de decisão. Ele precisa ter conhecimento sobre o caso, pensar sobre os fatos e evidências de forma racional, e tomar uma decisão com o objetivo de produzir justiça, e não por um capricho ou interesse pessoal.
Todo mundo concorda com isso em relação a um julgamento, e acho que deveríamos levar em consideração esse tipo de comportamento em relação não apenas ao júri, mas sobre os juízes, os legisladores, os líderes militares e até o eleitorado.
Como podemos colocar isso na perspectiva do "brexit" e da ascensão de Trump?
Há problemas na forma como os eleitores tomam decisões e no que eles acham que acontece no país. No caso do "brexit", os eleitores que votaram pela saída da União Europeia tinham informações equivocadas sobre a realidade britânica.
Eles superestimavam a proporção de imigrantes e minimizavam a importância de investimentos europeus no país, por exemplo. O lado que ganhou não sabia do que estava tratando ao tomar a decisão. Não conhecia os fatos e tomou uma decisão estúpida.
Como se pode evitar isso?
Ter um conhecimento rudimentar de políticas toma uma enorme quantidade de tempo e é incompatível com a divisão de trabalho na nossa sociedade. Não podemos esperar que as pessoas comuns tenham conhecimento suficiente para votar de forma inteligente sobre todos os temas.
A democracia representativa deveria consertar isso ao colocar no poder pessoas que se informam sobre o assunto em relação ao qual vai ser tomada uma decisão.
A democracia representativa não faz exatamente isso?
A democracia tem um certo grau de capacidade de compensar a ignorância dos eleitores, graças à representação, à burocracia independente e à existência da oposição. O sistema se sai melhor do que se poderia imaginar ao pensar que ele reflete as preferências do eleitorado.
Ainda assim, para ganhar eleições, candidatos sempre levam adiante ideias e políticas que correspondem ao que as pessoas querem. E o que as pessoas querem reflete o que elas sabem. Se elas não sabem muito, vão querer as coisas erradas.
O governo brasileiro está tentando passar medidas de austeridade e está sendo criticado. O governo não deveria ouvir a população?
O simples fato de uma política ser impopular não é necessariamente um ponto contra ela, pois nem todas as pessoas sabem como ela funciona.
Duvido que o brasileiro comum tenha condições de ter uma opinião bem informada sobre isso, como também não teria a população do Canadá ou da Alemanha. Saber se isso é uma boa ideia ou não é algo complicado, que depende de um conhecimento avançado de economia.
Uma questão óbvia: se vamos tomar uma decisão sobre o encanamento de uma casa, precisamos de conhecimento sobre o assunto. A maioria das pessoas não tem conhecimento sobre como o encanamento funciona, então não é preciso ter a opinião de todas as pessoas a respeito do encanamento, e a decisão precisa ser tomada por quem entende do assunto.
Seu posicionamento em relação à democracia é criticado como excludente e elitista.
Não acredito que as pessoas tenham um direito inerente ao voto, ou que o direito ao voto dê as pessoas uma posição de igualdade na sociedade. A democracia ainda é o melhor sistema, sem dúvida. Mas pode melhorar.
Em substituição, o senhor sugere a adoção da "epistocracia". Como isso funcionaria?
Como um sistema de tomada de decisões em que as pessoas que teriam direito a voto tivessem conhecimento real sobre as questões a serem decididas.
Não seria algo perigoso?
A epistocracia teria como sistema de freios a própria desconfiança das pessoas em relação a ela. Claro que ele não funcionaria perfeitamente em qualquer lugar, mas teria potencial em lugares onde democracias já funcionam. Seria um bom modelo na Dinamarca, por exemplo, mas não na Venezuela.
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Epistocracia defende república dos sábios
Epistocracia (ou epistemocracia, como também aparece citado em trabalhos acadêmicos no Brasil), é um conceito de sistema político baseado na ideia de episteme. O termo foi usado por Platão na filosofia grega, no século 4o a.C., para se referir ao "conhecimento verdadeiro", em oposição à opinião infundada, sem reflexão.
Por esse sistema, o poder político não deveria ser distribuído igualmente a todos os cidadãos, em contraposição à democracia, mas sim estar nas mãos das pessoas sábias.
Surgida como ideia de um governo de reis filósofos em Platão, a epistocracia foi discutida como um possível governo de sábios por Aristóteles e chegou a ser considerada como modelo durante a República Romana –sem nunca ter sido implementada.
O conceito passou ainda por formulação moderna com John Stuart Mill (1806-1873), para quem as pessoas educadas deveriam ter votos extras numa democracia. Jason Brennan defende uma epistocracia que mantivesse as principais instituições democráticas, como partidos e eleições gerais.
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RAIO-X: JASON BRENNAN
- NASCIMENTO 1979
- OCUPAÇÃO Professor de estratégia, ética, economia e políticas públicas da Universidade Georgetown
- FORMAÇÃO Doutor em filosofia pela Universidade do Arizona
- LIVROS "Against Democracy" (Contra a Democracia, Princeton University Press), "The Ethics of Voting" (A Ética do Voto, Princeton University Press), "Why Not Capitalism?" (Por que não Capitalismo?, Routledge Press) e "Markets without Limits" (Mercados sem Limites, Routledge Press)
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