Com simpatia de Trump, Putin tem outra vitória contra os EUA

PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"

Abrace o Kremlin e não se surpreenda quando estiver queimado. Não há necessidade de acreditar nas histórias espalhafatosas e não verificadas sobre os esforços russos para agradar e comprometer Donald Trump, para reconhecer o perigo da paixão do presidente eleito por Vladimir Putin.

Trump é um rico empreendedor imobiliário; o presidente russo, ex-chefe do implacável Serviço Federal de Segurança do seu país, ou FSB. Não se trata de uma combinação equilibrada.

Putin colocou no bolso uma vitória significativa antes mesmo de Trump chegar à Casa Branca.

Da próxima vez que as agências de inteligência dos EUA detectarem uma ameaça à segurança —outra incursão russa na Ucrânia, digamos, ou a subversão de governos eleitos na Europa Oriental—, o Kremlin terá como revidar.

Se o ocupante do Salão Oval não acredita na CIA, na Agência de Segurança Nacional ou no FBI, por que alguém mais deveria acreditar neles?

Trump quebrou todas as regras da política para ganhar a Casa Branca, mas um presidente em guerra com os encarregados de manter os EUA seguros?

As agências de inteligência nem sempre acertam. Nos próximos anos, a CIA vai pagar o preço dos seus pareceres equivocados sobre os programas de armas de Saddam Hussein.

Mas os espiões não poderiam ter tido maiores certezas ao dizer que o Kremlin invadiu computadores do Partido Democrata durante a campanha eleitoral à Presidência.

Líderes republicanos no Congresso acreditaram nas agências. Rex Tillerson, escolhido por Trump para secretário de Estado, diz ser uma "suposição justa" que tais ataques cibernéticos só poderiam ter ocorrido com a autorização de Putin.

Trump prefere atirar no mensageiro: o vazamento desta semana, com denúncias de que Moscou reuniu material pessoal comprometedor, foi a prova da caça às bruxas contra ele pelas próprias agências dos Estados Unidos.

Quando Trump pergunta retoricamente se está vivendo na Alemanha nazista, o adjetivo que mais rapidamente vem à cabeça é "desconcertante".

Ninguém que tenha assistido à entrevista coletiva incoerente e petulante do presidente eleito, na quarta-feira, poderia dizer que sabe aonde vai levar o reajuste que ele propôs para as relações dos Estados Unidos com a Rússia.
Ele ainda insiste que quer se dar bem com Putin. Mas depois acrescenta que talvez eles se desentendam.

REAPROXIMAÇÃO

Sim, o Kremlin provavelmente foi responsável pela invasão do Comitê Nacional Democrata, mas o que é realmente vergonhoso são os vazamentos de agências de inteligência dos EUA.

Um bom relacionamento com Moscou ajudaria na luta contra o Estado Islâmico. Mas não, ele não vai reverter as últimas sanções do presidente Barack Obama contra a Rússia.

Haveria pouco a discutir com uma demonstração de "respeito" da Casa Branca pelo presidente russo, para reduzir a tensão. Putin quer reconhecimento como líder que tem um lugar na mesa principal dos assuntos globais.

Ele compartilha com Trump a desesperadora suscetibilidade. Eles são irmãos de narcisismo. Se algum tapinha nas costas de Trump conseguir salvar o orgulho ferido Putin, tudo muito bem, tudo muito bom.

O mundo é um lugar mais seguro quando os EUA e a Rússia encontram um modo de administrar suas diferenças.

Eles fizeram isso, com alguns resultados, no auge da Guerra Fria. Nenhum dos lados se beneficiou da renovação das Forças Armadas na Europa Oriental e nos países bálticos. Há muitas armas nucleares por aí. Os riscos de confronto acidental não são negligenciáveis.

O perigo surge quando compromisso se torna sinônimo de submissão, quando a dissuasão necessária é confundida com provocação e quando "conversar" com Moscou se transforma em uma marca de realismo geopolítico que diz que o Ocidente sempre deve ceder.

Na mesma medida em que Trump é vago sobre o que quer do Kremlin, os objetivos de Putin são totalmente claros.

Eles começam com a anuência ocidental em relação ao revanchismo russo na Ucrânia e ao impiedoso bombardeio de civis para sustentar o regime de Bashar al-Assad na Síria.

Continuam com o levantamento das sanções contra Moscou e terminam com o eventual descomprometimento dos EUA em relação à Europa e o estabelecimento de uma esfera de influência russa nos ex-territórios soviéticos.

Quando os funcionários do Kremlin falam de uma nova arquitetura de segurança para a Europa, o que eles querem dizer é o fim da presença dos EUA. A Guerra Fria terminou, então os norte-americanos devem voltar para casa.

Por esse prisma, Geórgia, Belarus, Moldova e Ásia Central, bem como a Ucrânia, "pertencem" a Moscou. Por sua vez, a Otan durou mais do que seus propósitos e certamente não tem lugar nos ex-Estados do Pacto de Varsóvia.

Se essas ambições soam fantasiosas, o desprezo público de Trump pela Otan e sua aversão temperamental a apoiar aliados deram uma brecha a Putin.

Trump está menos interessado em preservar a Pax Americana do que em celebrar "acordos" com outras grandes potências. Os europeus podem pagar por sua própria segurança.

O mundo de Putin é o mundo de Trump, onde interesses nacionais estreitos são colocados no lugar de regras e normas internacionais, e onde nações mais fracas se submetem à vontade das poderosas. Equilíbrio de poder, como os europeus costumavam chamar.

Há verificações sendo feitas sobre Trump. O escândalo da invasão digital coloca uma nuvem sobre suas motivações e opiniões.

E, se a audiência de confirmação de Tillerson, no Senado, mostrou algo, foi que o próprio partido de Trump tem uma visão bastante diferente de Putin. Mas o Kremlin não se contentará com seu sucesso inicial.

E quem sabe o que Trump fará quando estiver na Casa Branca? Falar de tempos perigosos é pouco.

Tradução de DENISE MOTA.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.