Descrição de chapéu The New York Times

Seca e guerra agravam ameaça de fome em quatro países

JEFFREY GETTLEMAN
DO "NEW YORK TIMES", EM BAIDOA (SOMÁLIA)

Primeiro as árvores ressecaram e começaram a rachar.

Depois, os bodes não conseguiam mais se manter de pé.

Agora, no quente, liso e pedregoso planalto em torno da cidade de Baidoa, milhares de pessoas lotam campos de refugiados desprovidos de recursos. Pode-se ver muitas delas segurando suas barrigas com as mãos para aliviar a dor. Algumas defecam à vista de todos. E outras já estão mortas, vítimas de uma epidemia de cólera.

"Mesmo que você consiga comida, não há água", disse Sangabo Moalin, mãe de família que vive em um dos campos de refugiados, apoiando a cabeça em uma mão magra como uma folha. Ela disse que
seu corpo estava "queimando".

Uma nova onda de fome está a caminho da Somália. E essa não é a única crise que as agências assistenciais correm para resolver. Pela primeira vez em muito tempo, existe possibilidade bastante real de que quatro ondas de fome –em Somália, Sudão do Sul, Nigéria e Iêmen– irrompam ao mesmo tempo, o que colocaria mais de 20 milhões de vidas em risco.

Funcionários de organizações assistenciais internacionais disseram estar diante de um dos mais graves desastres humanitários desde a Segunda Guerra Mundial. E eles estão determinados a não repetir os erros do passado.

Uma lição poderosa da última onda de fome na Somália, há apenas seis anos, foi a de que ondas de fome não se relacionam apenas a comida. Envolvem também algo de ainda mais básico: a água.

Uma vez mais, a falta de água potável e deficiências de higiene estão deflagrando surtos de doenças letais nos campos de refugiados da região. Já começou a corrida para escavar mais latrinas, transportar grande volume de água potável aos campos, e distribuir mais sabonete, mais tabletes para tratamento de água e mais baldes plásticos –suprimentos claramente de baixa tecnologia, mas capazes de salvar muitas vidas.

"Subestimamos o papel da água e sua contribuição para a mortalidade, na última onda de fome", disse Ann Thomas, especialista em água, saneamento e higiene da Unicef (Agência das Nações Unidas para a Infância). "A importância da água fica encoberta pela da comida".

As ondas de fome estão surgindo enquanto uma seca varre a África e diversas guerras diferentes bloqueiam o acesso a áreas extremamente necessitadas. Representantes das Nações Unidas dizem necessitar de uma grande injeção de dinheiro para responder à crise. Até o momento, sua deficiência de verbas é da ordem não de milhões mas de bilhões de dólares.

Ao mesmo tempo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vem instando o Congresso a cortar as verbas de assistência estrangeira e o dinheiro destinado às Nações Unidas, o que, temem as organizações assistenciais, poderia multiplicar as mortes. Tradicionalmente, os Estados Unidos são os maiores doadores mundiais de verbas de assistência.

"O sistema internacional de assistência humanitária está à beira do colapso", disse Dominic McSorley, presidente-executivo da Concern Worldwide, uma grande organização assistencial privada.

Os trabalhadores das organizações assistenciais dizem que a comida e água necessárias existem em abundância no planeta –e mesmo nos países mais atingidos pela crise.

Mas conflitos armados muitas vezes causados por rivalidades pessoais entre alguns poucos homens viram de cabeça para baixo as vidas de milhões de pessoas, destruindo mercados e causando flutuações ferozes nos preços dos produtos essenciais.

Em algumas áreas do centro da Somália, uma lata de 20 litros de água costumava custar cerca de quatro centavos de dólar. Nas últimas semanas, o preço disparou para 42 centavos de dólar. O valor pode não parecer muito elevado.

Mas quando a renda diária é inferior a US$ 1 (R$ 3,10), o rebanho da família –sua fonte de orgulho e riqueza– está reduzido a uma pilha de ossos calcinados, e as plantações foram recobertas pela poeira, 42 centavos de dólar nem sempre estão disponíveis.

"Não existe água grátis", disse o nômade Isaac Nur Abdi, sentado na penumbra de um centro de tratamento de cólera em Baidoa, alguns dias atrás. Ele estava abanando sua mãe com um leque. O rosto envelhecido dela, com cavidades oculares cavernosas e malares salientes, portava a reveladora assinatura da fome.

Cenas como essa se desenrolam em toda a região. No Iêmen, os bombardeios aéreos incansáveis e um bloqueio ao comércio externo comandados pela Arábia Saudita mutilaram a economia, causaram uma disparada nos preços da comida e levaram centenas de milhares de crianças à beira da fome.

No nordeste da Nigéria, milhares de pessoas desabrigadas adoeceram em função da água suja e da higiene precária, enquanto prosseguem os combates entre os militantes islâmicos e as forças armadas nigerianas, que não têm um histórico brilhante quando o assunto é proteger as pessoas vulneráveis.

A Força Aérea nigeriana bombardeou um campo de refugiados em janeiro e matou dezenas de pessoas, mas afirmou que o ataque havia sido um acidente.

No Sudão do Sul, tanto os rebeldes quanto os soldados do governo bloqueiam intencionalmente a passagem de carregamentos de alimentos de emergência, e roubam alguns caminhões de comida, segundo as organizações assistenciais.

No sábado (25), seis trabalhadores de organizações assistenciais foram mortos, o que complica ainda mais os esforços de assistência. Comunidades inteiras estão imobilizadas em pântanos maláricos, e tentam sobreviver comendo flores de lótus quase indigeríveis, e bebendo as águas pantanosas e infestadas de vermes.

Enquanto os demais países estão tecnicamente à beira da fome, a ONU já declarou um estado oficial de fome em diversas áreas do Sudão do Sul.

Os cientistas vêm dizendo há anos que a mudança no clima tornará as secas mais frequentes. Os países mais prejudicados, no entanto, são responsáveis por proporção muito baixa das emissões de carbono que em geral são consideradas como causa da mudança no clima.

O Sudão do Sul e a Somália, por exemplo, têm relativamente poucos veículos e quase nenhuma indústria. Mas os campos estão secando e os pastos estão desaparecendo nos dois países, dizem cientistas, em parte por causa dos efeitos mundiais da poluição.

Os povos desses países sofrem em consequência do uso de veículos e da produção industrial em outros países, e do apego de outros povos a coisas como televisores de telas planas e iPads, que a maioria dos somalis e sudaneses do sul só verão em seus sonhos.

Não é simples levar comida e água limpa a essas áreas onde tudo está ressecado, amarelado e morto.

Baidoa mesma está sob o controle do precário governo nacional sudanês e de forças da União Africana. Mas a poucos quilômetros da cidade, o controle do território passa à facção militante islâmica Al Shabaab, que proibiu o acesso de organizações assistenciais ocidentais.

"O fato de haver pessoas morrendo perto de Baidoa e de não podermos chegar a elas me deixa furioso" disse Patrick Laurent, coordenador de água e saneamento contratado pela Unicef na Somália.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.