Ex-aliada, procuradora venezuelana vira fardo de Maduro

DIEGO ZERBATO
DE SÃO PAULO

A prestação de contas da procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega Díaz, não parecia trazer notícia maior naquele 31 de março de 2017 que a cobrança ao governo para controlar as armas.

A crítica poderia trazer um mal-estar entre a aliada de Hugo Chávez (1954-2013) e seu herdeiro na Presidência, Nicolás Maduro, mas nada comparável ao que viria nos minutos seguintes.

Ela chamou de "ruptura na ordem constitucional" as sentenças do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) que tiravam os poderes do Legislativo, dominado pela oposição, e a imunidade parlamentar.

"É minha obrigação manifestar ao país minha preocupação, sobretudo considerando que todos os venezuelanos na Constituinte de 1999 consideramos renegociar este contrato social."

Maduro tentou aparentar normalidade com a rara divergência entre os Poderes, normalmente em suas mãos. Usou a discrepância para ressaltar independência das instituições venezuelanas.

Mas estava longe de ser corriqueiro uma aliada usar a linguagem de seus rivais "golpistas" e de líderes estrangeiros como o secretário-geral da OEA, o "lixo humano" Luis Almagro.

O próprio Maduro comprovaria isso ao convocar o Conselho de Defesa da Nação, que derrubou a decisão. Para ele, apagaria o incêndio em suas frentes e minimizaria as manifestações da oposição.

Dois meses e meio depois, os protestos não arrefeceram. E os sorrisos na visita de Ortega Díaz ao Palácio de Miraflores (sede do Executivo), em abril, parecem algo distante.

Após o encontro, ela começou a ser pressionada pelo chavismo. A briga tornou-se irreversível quando Maduro resolveu tocar no que a procuradora considera o maior legado de Chávez.

"[A Constituição de 1999] é uma corrente de pensamento, não um partido político, é uma filosofia de vida, e este é o principal legado de Chávez", disse Ortega Díaz, no dia 8.

Ela enviou três ações ao TSJ para impedir a Constituinte. Para a procuradora, Maduro viola a lei ao não submeter a convocação a referendo e por fazer a eleição da Assembleia sem sufrágio universal.

O presidente ironizou. "Parabenizo a procuradora-geral por reconhecer a legitimidade soberana do Tribunal Supremo de Justiça", afirmou.

Todos os recursos foram negados pela Corte. Diante da derrota previsível, considerando o histórico do Judiciário em favorecer o governo, ela pediu a retirada e a suspensão dos magistrados.

O tribunal respondeu ao ataque ao reabrir um processo em que Ortega Díaz é acusada de desviar US$ 250 mil do orçamento do Ministério Público no uso de um avião privado para fins privados.

O rompimento surpreende mais devido à proximidade de sua família com o pai da Revolução Bolivariana. Seu pai, o comunista Pedro Ortega Díaz, foi homenageado diversas vezes por Chávez.

Seu irmão, Humberto, participou do fracassado golpe de 1992, e ela foi militante de esquerda desde os anos 1970.

A proximidade a levou à chefia jurídica do canal VTV e, anos depois, à Procuradoria. Apesar da surpresa, os atritos começaram em 2014, um ano após a morte de Chávez, embora ela tivesse sido mantida no cargo pela Assembleia Nacional, então chavista.

O distanciamento seria marcado em dezembro do ano seguinte, quando ela não se pronunciou sobre a indicação de 13 juízes para o TSJ.

O segundo passo foi liberar números da violência, tema tabu do chavismo. Eles confirmaram projeções de ONGs de que a Venezuela tem a maior taxa de homicídios das Américas.

Em dezembro, ela foi preterida no Conselho Moral Republicano. Ela deveria comandá-lo em 2017, mas o empossado foi o defensor do povo, Tarek William Saab.

INVESTIDA CHAVISTA

Ao comprar briga por atestar a versão da oposição na morte de um manifestante, a procuradora foi contestada pelo chavismo em termos patológicos. O deputado governista Pedro Carreño pediu ao TSJ avaliação psicológica da ex-aliada porque ela "não está em seu juízo perfeito".

A outra tática foi mais violenta. Ela e o marido, o deputado Germán Ferrer, passaram a receber ameaças de morte do Sebin (Serviço Bolivariano de Inteligência).

Outras têm nome e sobrenome. O vice-presidente, Tareck el-Aissami, e o considerado número 2 de fato do chavismo, Diosdado Cabello, ameaçaram tirar a agora "porta-voz da direita" do cargo com a Constituinte.

CRISE NA VENEZUELA
CRONOLOGIA

9.jan
Assembleia Nacional declara abandono de cargo de Maduro; Justiça (TSJ) derruba decisão

10.fev
Conselho Nacional Eleitoral adia eleições regionais, previstas para dezembro, pela 2ª vez para recadastrar partidos

28.mar
20 dos 34 países da OEA exigem a convocação da votação, a entrada de ajuda humanitária e a soltura de opositores

30.mar
TSJ assume funções do Legislativo, em ação vista como golpe pela oposição; dois dias depois a sentença é revertida

31.mar
Protestos começam com repressão do governo aos rivais; violência aumenta nos dias seguintes

7.abr
Presidenciável Henrique Capriles perde direitos políticos por 15 anos

27.abr
Governo anuncia saída da Venezuela da OEA

1º.mai
Maduro convoca Constituinte, denunciada pela oposição

16.mai
Número de mortos em protestos chega a 43, se igualando a onda de 2014

22.mai
Protestos e saques deixam mortos em Barinas, Estado natal de Hugo Chávez

8.jun
Procuradora-geral Luisa Ortega Díaz apresenta recurso contra Constituinte; TSJ rejeita pedido quatro dias depois

13.jun
Ortega Díaz pede afastamento de oito juízes do TSJ; medida é negada três dias depois

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.