Parados na fronteira dos EUA, haitianos encontram "sonho mexicano"

Crédito: Gregory Bull - 24.mai.2017/AP In this May 24, 2017 photo, a Haitian man makes his way up a dirt road towards a makeshift shelter at The Ambassadors of Jesus Church in Tijuana, Mexico. He is among about 4,000 Haitians to establish roots in Mexico's northwest corner after the United States abruptly closed its doors late last year. The Mexican government has welcomed them, and they are already having an outsize economic and cultural impact. (AP Photo/Gregory Bull) ORG XMIT: CAGB300
Haitiano caminha até acampamento improvisado na igreja The Ambassadors of Jesus Church em Tijuana

ELLIOT SPAGAT
DA "ASSOCIATED PRESS" EM TIJUANA, MÉXICO

José Lluís Millán encontrou uma nova safra de empregados excelentes em um lava jato de carros elegante em Tijuana, cujos clientes cruzam a fronteira dos EUA e pagam até US$ 950 (cerca de R$ 2.980) para ter seus bens preciosos lavados a vapor e esfregados durante horas.

Eles nunca se atrasam, trabalham rápido e vêm nos dias de folga para aprender novas técnicas, características que, segundo Millán, fazem deles modelos para seus colegas mexicanos.

Eles estão entre milhares de haitianos que chegaram ao noroeste do México com a intenção de saltar a fronteira antes que os EUA fechassem subitamente as portas, no ano passado.

O governo mexicano os recebeu bem, com vistos que os ajudaram a suprir a demanda de mão de obra na pujante economia de Tijuana.

Em um país cuja população é 1% negra, os haitianos de Tijuana se destacam.

Eles vivem em cômodos lotados e enviam grande parte dos magros salários para sustentar suas famílias no Haiti. Os haitianos ganham muito menos do que ganhariam nos EUA, mas o suficiente para não se arriscarem à deportação caso fossem para o norte.

Dois novos restaurantes haitianos no centro da cidade servem pratos com manga e purê de bananas. Dezenas de crianças haitianas frequentam escolas públicas. As fábricas que exportam para os EUA recrutam haitianos, que também podem ser encontrados trabalhando como garçons e rezando em congregações que agora têm serviços em língua crioula.

"É o sonho mexicano para muitos deles, um sentido de pertencimento", disse Millán. "O México lhes deu uma oportunidade. O México se abriu e deixou que realizassem seus sonhos."

Millán, que viveu na área de Los Angeles durante 20 anos, até que foi obrigado a partir no ano passado por empregar dezenas de pessoas ilegalmente em sua empresa de organização de festas, vê paralelos com os mexicanos que estão nos EUA. Seu trabalho de equipe é exemplar. Alguns clientes pedem por eles.

Os haitianos "lutam firme, com força, e não param", diz Millán.

Eles seguiram um caminho acidental de sua terra natal empobrecida no Caribe até Tijuana, cidade com cerca de 2 milhões de habitantes que faz fronteira com San Diego, na Califórnia, e também tem grandes bolsões de imigrantes chineses e coreanos.

O Brasil e seus vizinhos receberam haitianos depois do terremoto que atingiu a ilha caribenha em 2010. Quando as construções para a Olimpíada de 2016 terminaram e o Brasil entrou em um turbilhão político, eles cruzaram dez países de avião, barco, ônibus e a pé até San Diego, onde as autoridades americanas os aceitavam por razões humanitárias.

O então presidente Barack Obama mudou o rumo em setembro e começou a deportar os haitianos que chegavam. Muitos decidiram se estabelecer no México.

Depois de lutar como professor escolar no Haiti, Abelson Etienne mudou-se para o Brasil em 2014 para trabalhar em uma fábrica que fazia cabos para produtos de iluminação.

Ele chegou a Tijuana em dezembro, depois de uma dura viagem com sua mulher, que, apesar da mudança de política nos EUA, foi recebida por motivos humanitários, supostamente por estar no sétimo mês de gravidez.

Etienne, que tem 27 anos e estudou química no Haiti, assumiu uma rotina de seis dias de trabalho por semana e três turnos duplos, que lhe valem 1.900 pesos (R$ 335). O dinheiro vai para sua mulher em Nova York e para o bebê que ele ainda não conhece. Aos domingos, dorme até a tarde e vai à igreja.

"Tem muito trabalho em Tijuana", disse ele, com uma panela de peixe cozido com manga e tomate preparado num fogão elétrico no apartamento que ele divide com mais três haitianos. "Fui muito bem tratado no México."

Assim como seu vizinho ao norte e muitos outros lugares na América Latina, o México tem uma história complexa de raças. As elites mexicanas tendem a ser brancas, e os negros às vezes são diminuídos casualmente, como em frases do dia a dia como "trabalha como um negro", que significa trabalhar duro.

"Estou muito à vontade com esse pessoal", disse Mario Aguirre, o diretor de operações da fábrica e um veterano há 43 anos na indústria. "Eles nos deram muito bons resultados. Não faltam ao trabalho, sempre chegam na hora. Gostaríamos de ver a mesma atitude em todos."

A fábrica ofereceu 1.500 pesos (R$ 266) por uma semana de seis dias, com plano de saúde, férias pagas e transporte grátis ao trabalho. St. Surin, que deixou o Brasil com a esperança de se reunir a um primo em Miami, manda o que ganha para uma pessoa que cuida de seus três filhos no Haiti, os quais espera trazer para Tijuana.

"O México poderia ser meu lar", disse ele diante de um prédio lotado, coberto de grafite, onde uma freira permite que cerca de 50 haitianos morem de graça em uma rua compartilhada por carros e cães vadios. Ele usa a água de um vizinho para tomar banho e cozinha em uma fogueira sob uma grande tenda.

A igreja Embaixadores de Jesus Cristo, que fica em uma estrada de terra bordejada por pés de sisal e pneus velhos, abrigou até 500 haitianos no ano passado em pisos cobertos de colchões, sendo talvez o maior grupo de ajuda cívico ou religioso.

Seu pastor, Jeccene Thimote, quer construir um "pequeno Haiti" de cem casas ali perto, no fundo de um cânion onde o som de pavões e galos e o odor de porcos permeiam o ar. Ele construiu três casas antes que a cidade interditasse as construções por falta de controle contra enchentes.

Crédito: Guillermo Arias- 6.set.2017/AFP  View of an artwork by French artist JR on the US-Mexico border in Tecate, California, United States on September 6, 2017, / AFP PHOTO / GUILLERMO ARIAS
Instalação do artista francês JR na fronteira entre EUA e México em Tecate, California

Thimote, 32, sobrevive com duas horas de sono, acordando às 5h para rezar e servindo como capataz para uma equipe de dez haitianos que constroem uma casa em um dos bairros mais ricos de Tijuana.

Ele trabalha à noite na RSI Home Products, companhia sediada na Califórnia que faz armários embutidos para as lojas Home Depot e Lowe's.

Thimote, que estava entre os 160 haitianos que ainda moravam de graça na igreja neste verão, manda o que ganha para o Haiti para pagar dívidas da família e sustentar uma filha de 3 anos.

Ele esperava se juntar a um primo em Nova York quando partiu do Equador no ano passado, mas considera o México melhor que o Haiti: "Tem mais pobreza lá do que aqui".

A igreja se adaptou. Toda quarta-feira à noite, os haitianos se reúnem para um sermão em crioulo. Os mexicanos frequentam um serviço em espanhol no domingo. Um haitiano e uma mexicana anunciaram recentemente planos de se casar na igreja.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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