Médicos e indústria farmacêutica dão origem a crise de opioides

FERNANDA MENA
DE SÃO PAULO

Não deixa de ser irônico que o grande desafio da atual política de drogas americana emane da indústria farmacêutica e da classe médica.

Explico: tudo indica que foi a prescrição descontrolada de analgésicos opiáceos comercializados legalmente em farmácias o que "viciou" mais de 2,5 milhões de norte-americanos, tornando os EUA o país que mais consome essas substâncias no mundo.

E foram médicos e suas associações de classe que, na virada para o século 20, se aliaram a grupos religiosos como os grandes lobistas do controle de narcóticos, dentro e fora dos EUA.

No final do século 19, substâncias como o ópio, a morfina e a cocaína circulavam livremente e eram tratadas como "formadoras de hábito, usadas para fins médicos e lúdicos".

Foram as associações de classe que passaram a advogar pela proibição do uso não médico dessas substâncias, motivadas não só pelos problemas decorrentes de seu abuso (em 1900, estima-se que 200 mil americanos usavam essas drogas) mas também pelo poder que a exclusividade de produção, comércio e prescrição lhes conferia.

A cobra parece ter mordido o próprio rabo.

Os analgésicos mais populares nos EUA, como Vicodyn, Percocet e OxyContin, são baseados em morfina (substância da família dos opiáceos). Depressores do sistema nervoso central, eles tornam o cérebro mais lento, reduzindo a percepção da dor para a qual são, em geral, receitados. Estudos apontam que cerca de 100 milhões de americanos sofrem de dor crônica.

São medicamentos caros, e seu uso contínuo pode levar a um gasto de até US$ 200 (R$ 657) por dia.

Aos poucos, muitos dependentes foram substituindo os remédios de farmácia, vendidos legalmente, por seu equivalente proibido, porém mais em conta: a heroína.

A tendência de consumo foi rapidamente percebida pelos cartéis mexicanos , que passaram a produzir ópio, base da morfina e da heroína.

Segundo a Comissão para o Combate à Dependência de Drogas e à Crise de Opiáceos, 142 americanos morrem por dia de overdose.

Mudar essa tragédia implica em medidas arrojadas para os americanos, mas comum em países europeus, como a oferta de naloxona (droga sintética capaz de reverter uma overdose em andamento) ou a prescrição de metadona, substância usada em terapias de substituição de heroína e outros opioides.

RACISMO

Seja por sua ligação umbilical com a indústria farmacêutica e a classe médica, seja simplesmente por se tratar de um problema que afeta majoritariamente brancos, a epidemia de opioides nos EUA provocou tratamento do governo distinto daquele dado à epidemia de crack dos anos 1980 e 1990.

Enquanto o problema atual é tratado como de saúde pública, o problema do crack, cujos usuários eram quase todos negros e pobres, sempre foi caso de polícia.

Os negros são 13% da população dos EUA, mas 40% dos presos por crimes ligados a drogas, o que deu cor ao gigantesco sistema carcerário norte-americano, o maior do mundo. Entre os presos por infringir a lei de drogas em 2012, por exemplo, 80% foram enquadrados por porte de drogas, e não pelo crime de tráfico.

A abordagem de saúde para a questão do abuso de drogas é bem-vinda. Resta saber se ela vai se estender igualmente a todos, independente de cor, classe social ou substância de uso.

Crédito: Editoria de Arte/Folhapress
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