Crise financeira de 2008 deixa marcas na sociedade da Islândia

DIOGO BERCITO
ENVIADO ESPECIAL A REYKJAVÍK

Existem duas Islândias no tempo: uma anterior ao colapso financeiro de 2008 e outra após. O país segue gélido, mas o trauma da crise alterou a economia, a política e mesmo as relações sociais, marcando uma fenda em sua história.

"Foi uma experiência traumática e dolorosa, e há ainda hoje bastante desconfiança em relação à classe política e ao sistema bancário", diz à Folha Gylfi Magnússon, que foi ministro da Economia entre 2009 e 2010.

Os 330 mil habitantes da ilha haviam trocado durante os anos 90 a tradicional pesca de arenque pelo mercado financeiro, incentivados por uma política de privatizações. Bancos ofereciam àquela época empréstimos mais experimentais do que as canções da cantora local Björk.

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O trauma da "kreppa" foi especialmente incômodo porque a expansão do mercado financeiro islandês nos anos 1990 e 2000 tinha coincidido com uma inesperada projeção externa do país.

"Era nossa primeira expansão econômica não relacionada à pesca, e de repente estávamos influenciando o restante do mundo com música, literatura e filmes, exportando ideias", afirma à Folha Andri Snaer Magnason, um dos principais escritores islandeses contemporâneos.

A cantora Björk, que lançou seu novo álbum no último dia 24, é o melhor exemplo do súbito alcance cultural da ilha. "Não é que eu a esteja culpando", brinca, "mas o país pensava que, se aquela garotinha podia conquistar o mundo, os outros também conseguiriam".

O país viveu naquelas décadas uma ambição econômica desmedida que, segundo Magnason, empregou "toda a massa intelectual em uma direção muito danosa". O capital direcionado ao mercado financeiro deixava descobertas outras áreas da economia, como o setor das start-ups.

RAIVA

"Um dos resultados da crise foi surgir essa raiva, em especial contra os bancos, prejudicando inclusive as relações pessoais. Há a sensação de que parte das pessoas traiu as demais", afirma —é afinal um país com a população de Jundiaí (SP), em que muitos dos habitantes se conhecem ou são aparentados.

"A raiva se transformou em uma entidade em si, circulando pela sociedade como uma batata quente compartilhada pelo Facebook. "Temos raiva de alguma coisa nova todas as semanas."

A Ilusão do Tempo
Andri Snær Magnason
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Como os outros setores, a cultura não escapou ao impacto da crise. Serviu de inspiração. A principal obra de Magnason, "A Ilusão do Tempo" (320 págs., R$ 24,20, editora Morro Branco), trata de uma caixa mágica onde as pessoas se escondem para fugir de aborrecimentos como segundas-feiras, o mês de fevereiro —e a "kreppa".

"É um livro sobre a fuga das coisas que não queremos enfrentar", afirma o escritor de 44 anos, "mas também sobre o que aprendemos ao viver os tempos difíceis."

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