Califórnia se divide sobre legalização do uso recreativo da maconha

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Crédito: Matt McClein/The Washington Post Souvenires q1ue serão vendidos no resort de maconha da American Green em Nipton, na Califórnia
Souvenires q1ue serão vendidos no resort de maconha da American Green em Nipton, na Califórnia

SCOTT WILSON
DO "WASHINGTON POST"

No meio do deserto do leste da Califórnia, um grupinho de casas do início do século passado cerca o cruzamento de uma estrada de pista única e uma ferrovia.

Há um hotel, um restaurante com dez mesas e um mercado. Uma escavadeira levanta poeira entre os galpões onde vivem 30 pessoas. No passado uma cidade dinâmica do garimpo de ouro, hoje Nipton é um experimento.

A maior empresa americana de capital aberto que trabalha com maconha, American Green, comprou a cidade recentemente por US$ 5 milhões (R$ 16,5 milhões) com o plano de criar um resort turístico "movido a maconha" à beira do deserto de Mojave.

O investimento representa o potencial que alguns enxergam na expansão da economia da erva a partir desta segunda (1º), quando a droga passará a ter seu uso recreativo legalizado no Estado mais populoso do país.

"Este é o Hotel Califórnia", disse Stephen Shearin, o empreendedor que administra o projeto, citando a letra de uma música dos Eagles.

A empresa vai ampliar o Hotel Nipton, dobrando sua capacidade, e o café está sendo reformado. A prática de camping também será incentivada e haverá aulas e palestras, além de um anfiteatro.

"A maconha estará em toda parte para quem quiser", disse Shearin. "Quer fumar um baseado enorme? Quer experimentar apenas? Tudo bem. Mas não sopre fumaça sobre uma família que estiver aqui para curtir a paisagem."

Existe outro sentimento presente na véspera da mudança na lei: preocupação. A quatro horas de distância de carro chega-se a Oildale, perto da cidade de Bakersfield.

O Condado de Kern aprovou recentemente a proibição da venda de cânabis, mostrando o risco que algumas comunidades enxergam na disponibilidade fácil da droga, que o governo federal classifica na mesma categoria que a heroína.

Essas visões conflitantes se acirraram desde que os californianos votaram em 2016 pela legalização do consumo da erva por adultos e seu cultivo em pequena escala.

Pessoas munidas de receita médica podem comprar cannabis no Estado desde 1996. O referendo tornou a Califórnia o oitavo Estado, além do Distrito de Colúmbia (onde fica a capital Washington), a legalizar o consumo sem consentimento médico.

O referendo procurou esclarecer a posição da Califórnia, mas, sob alguns aspectos, teve o efeito oposto sobre o mercado de maconha legal no Estado, previsto para movimentar US$ 5 bilhões (R$ 16,5 bilhões) por ano.

Conhecida como Proposta 64, a medida aprovada autoriza adultos a ter pequenas quantidades de cannabis em sua posse e cultivar até seis pés da planta. Mas também permite que condados e cidades regulamentem venda e tributação e decidam por conta própria se permitem o cultivo em volumes maiores do que o fixado pela lei estadual.

O resultado é uma inconsistência nas regras vigentes no Estado. De acordo com o Centro de Questões Agrícolas da Universidade da Califórnia, os governos estaduais e locais podem recolher até US$ 1 bilhão (R$ 3,3 bilhões) por ano em impostos.

A lei federal também representa um problema para potenciais investidores. Sem ter uma ideia clara de qual será a posição do Departamento de Justiça sobre a legalização da maconha no Estado, muitas empresas estão com medo de investir em um setor que pode ser fechado pela administração atual ou por outras futuras.

Nipton está quase cercada por terras federais, e a única estrada que leva à cidade passa por essas terras, levantando uma dúvida: a possibilidade de pessoas que viajam a Nipton serem sujeitas às leis federais sobre drogas.

ECONOMIA

O garimpo de ouro construiu Nipton e a ferrovia a manteve crescendo durante décadas. Muitos anos atrás, Dennis Benson embarcava no trem quando ele desacelerava ao passar pela cidade, andando uma hora todas as manhãs para ir ao colégio.

Hoje Benson, 66, viu uma série de donos comprarem e venderem a cidade. A população de Nipton variou acompanhando o volume de minério nas colinas, o número de cabeças de gado pastando no deserto e, finalmente, os três barris de petróleo extraídos do local por dia.

Para Benson, a maconha representa a próxima etapa na economia de commodities de Nipton —uma corrida ao ouro verde.

Ele gosta do que vê a American Green fazendo desde que a nova proprietária comprou Nipton —uma área de 32 hectares ao todo— em agosto. "Esses caras já fizeram mais por esta cidade do que foi feito nos últimos 30 anos", afirma ele.

A cidade se situa na extremidade do condado de San Bernardino, que votou a favor da Proposta 64 em 2016. Os regulamentos que serão seguidos no condado ainda estão sendo redigidos, e é possível que o resort planejado não venda a droga.

Esses detalhes não preocupam Shearin, que comanda o projeto. Ele disse que a American Green pretende investir outros US$ 5 milhões (R$ 16,5 milhões) no desenvolvimento do resort, que será divulgado como santuário da maconha.

Lindsey Davidson e o marido, Freddie Wyatt, foram contratados pela American Green para administrar o mercadinho, o restaurante e o hotel. O casal e a filha de seis meses se mudam de Las Vegas para Nipton no início de janeiro.

"Este lugar vai ser incrível: o primeiro resort de verdade centrado na maconha, onde vamos tentar mudar as normas sociais", explicou ela.

MEDO

Sentindo os efeitos negativos da dependência de metanfetamina e heroína, o condado de Kern, onde fica Oildale, votou contra a Proposta 64, refletindo o medo generalizado de que as drogas, mesmo as legalizadas, estão destruindo a comunidade.

Em outubro, o condado reforçou essa posição, votando pela proibição de todas as vendas, num endurecimento da lei vigente. Com isso, 12 farmácias de maconha medicinal terão que ser fechadas em até um ano. "Qualquer lugar onde uma droga ilegal é consumida é motivo de preocupação", diz o chefe de polícia Larry McCurtain.

O que a heroína e outras drogas fizeram a Bakersfield e Oildale é evidente para quem acompanha a rotina do sargento Steve Wells. Ele parou numa noite recente para caminhar pelo Manes RV Park, uma área de cem metros de extensão cheia de trailers e barracos. "Faz um mês que não uso heroína", disse o primeiro morador que viu o sargento, apesar de Wells nunca tê-lo visto antes.

Uma casa perto dali onde moradores estavam cozinhando "óleo de mel", um concentrado de maconha, explodiu no mês passado. Um homem está no hospital, com queimaduras graves.

Mais tarde na mesma noite, Wells atendeu um chamado de um homem que estava ameaçando se suicidar porque sua namorada o deixara. A mulher disse ao sargento que foi embora porque seu companheiro é dependente de metanfetamina.

Wells passou mais de uma hora tentando acalmar o homem, mas acabou admitindo que não havia muito mais o que fazer. Quando os policiais se preparavam para ir embora, ouviram um tiro. O homem emergiu com a cabeça sangrando, mas vivo. "É um problema de toda uma geração", disse Wells.

Tradução de CLARA ALLAIN

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