Intervenção de forças estrangeiras na Venezuela seria péssima ideia

Crédito: Juan Barreto - 26.ago.2017/AFP Militares ensinam militantes chavistas a usar bateria antiaérea em exercício militar na Venezuela
Militares ensinam militantes chavistas a usar bateria antiaérea em exercício militar na Venezuela

SEAN W. BURGES
FABRÍCIO CHAGAS BASTOS
DA "AMERICA'S QUARTERLY"

As intenções do professor Ricardo Hausman são boas, mas sua proposta de uma intervenção militar para salvar a Venezuela do governo de Nicolás Maduro simplesmente não vai virar realidade. E não funcionaria.

Para começo de conversa, a única maneira pela qual uma mudança de regime decorrente de um ataque armado contra a Venezuela poderia ter êxito seria se as Forças Armadas dos Estados Unidos liderassem os combates.

Deixando de lado por enquanto o fator Donald Trump, o legado de mais de um século de ingerência direta e indireta dos EUA nos assuntos internos de quase todos os países nas Américas significa que ninguém no continente vai tolerar uma invasão militar dirigida por Washington.

Talvez um país latino-americano como o Brasil pudesse dirigir forças dos EUA, como aconteceu com a força MOMEP, da ONU, que arbitrou o conflito entre Equador e Peru na década de 1990.

De fato, isso seria coerente com os chamados por uma parceria regional maior lançados pelo chefe do Comando Sul dos EUA, almirante da Marinha Kurt Tidd, em depoimento perante o Congresso em abril de 2017.

Mas empreender exercícios de treinamento militar conjuntos na selva amazônica brasileira é muito diferente de deixar uma potência estrangeira enviar tropas americanas à batalha e alguns soldados, inevitavelmente, à morte. Também presume que Trump rejeitaria a oportunidade de provar que é o maior líder militar na história americana —ou mundial
.
Mesmo assim, vamos presumir, como hipótese, que Trump decidisse ceder a liderança a parceiros regionais, colocando todo o poderio das Forças Armadas americanas à sua disposição. Quem nas Américas tem a capacidade de planejar e dirigir tal invasão?

Não queremos criticar a qualidade da liderança militar na região, mas sim observar que a escala logística e estratégica de tal operação simplesmente estaria além do alcance da experiência e dos programas de treinamento dos corpos de oficiais latino-americanos.

Um brasileiro, chileno, colombiano ou mexicano poderia ser o comandante titular, mas o controle operacional e estratégico real estaria nas mãos das forças americanas e de Washington. Em última análise, a proposta aventada por Hausmann apenas criaria mais turbulência interna em um país já assolado por uma crise política e econômica que dura anos.

SOBERANIA

Mas essas não são as únicas razões por que o apelo de Hausmann por uma intervenção armada provavelmente não será ouvido. A soberania é um princípio sacrossanto na diplomacia latino-americana.

Os assuntos interamericanos são caracterizados comumente pelo bloqueio de precedentes que pudessem permitir qualquer espécie de intervenção estrangeira futura em assuntos nacionais.

De fato, basta considerar o fracasso do esforço da Organização de Estados Americanos (OEA) para aplicar plenamente a Carta Democrática Interamericana no caso da Venezuela.

Hausmann procura se desviar da dificuldade com a soberania, sugerindo que a Assembleia Nacional venezuelana promova o impeachment de Maduro e forme um novo governo que poderia, então, convidar uma força libertadora estrangeira a entrar em ação. Isso seria uma manobra técnica que não convenceria os diplomatas da região.

Não seria exagero visualizar isso sendo usado como precedente para chamados por intervenção armada da próxima vez que ocorresse um desacordo importante entre o Executivo e a Legislatura em outros países latino-americanos, como, dependendo do grau de militância de cada um, a Bolívia contemporânea, o Brasil, Equador, Honduras ou Nicarágua.

A crítica mais contundente à proposta de Hausmann talvez seja que ele deixa completamente de levar em conta a história das intervenções armadas para impor a democracia.

Como demonstram cabalmente as aventuras dos EUA no Oriente Médio, essas intervenções simplesmente não funcionam. Os líderes latino-americanos sabem disso, e isso se reflete no modo como promovem a democracia.

CORDA BAMBA

O regime político —autoritário ou democrático— de um país se baseia no equilíbrio subjacente de poder social e econômico no país. O mal-estar atual na Venezuela reflete a realidade de se caminhar sobre essa corda bamba política.

Quando o presidente Hugo Chávez tentou fazer uma revisão da Constituição, em 2007, o eleitorado decidiu que essa revisão implicaria numa ampliação indevida do poder do presidente, e a rejeitou.

Do mesmo modo, em 2015 os venezuelanos reagiram com inquietação à Presidência de Maduro, dando à oposição uma vitória retumbante nas eleições parlamentares. Os freios e contrapesos estavam em ação democrática.

As ambições do partido governista, o PSUV, foram limitadas, mas o partido continuou no poder porque a oposição não ofereceu uma alternativa digna de crédito que pudesse resolver os problemas enfrentados pela legião de pobres no país.

Além da aparente ausência de uma oposição digna de crédito na Venezuela, uma das razões principais da sobrevivência política de Maduro é o controle rígido que seu regime exerce sobre as Forças Armadas e a economia.

Hoje os interesses da elite estão indelevelmente vinculados ao controle total sobre o Estado. A desestabilização dos interesses representados pelo pacto de Maduro com as Forças Armadas poderia aprofundar a pobreza e potencialmente resultar numa guerra civil catastrófica.

Novamente, a oposição não está apresentando nenhuma proposta clara para enfrentar esse desafio, deixando a população com a opção de ficar com o diabo que ela conhece, e não optar pelo inferno pior que poderia estar por vir.

Para os venezuelanos, isso aponta para um desastre ainda maior do que aquele que Hausmann destacou. Parece não haver nenhuma opção digna de crédito para um governo competente.

Mesmo que houvesse, os tecnocratas e burocratas necessários para fazer o país funcionar ou já deixaram seus cargos ou foram expulsos deles, deixando no ar dúvidas reais quanto à capacidade doméstica de reconstruir o país.

Some-se a isso o chamado lançado por Hausmann por uma intervenção armada para restaurar a democracia, e o que se tem é uma receita para uma ocupação militar de longa duração, que, convenientemente, poderia ser financiada pela maior reserva de petróleo do mundo. Já vimos quão mal também isso funcionou no Oriente Médio.

A tragédia venezuelana é altamente complexa e resiste a soluções simplistas.

Propor ideias que não se sustentam, como uma intervenção armada, desperdiça o tempo valioso dos atores políticos que lidam com questões mais prementes, por exemplo, como levar assistência humanitária à Venezuela e assegurar à elite nacional corrupta que ela poderá deixar o país tranquilamente se arquitetar uma transição doméstica de volta à governança representativa.

A tristeza e dor de Hausmann são compreensíveis e compartilhadas. Mas uma intervenção atendendo a convite não é uma solução viável da crise da Venezuela.

SEAN BURGES é professor de relações internacionais na Universidade Nacional Australiana e professor visitante da Universidade Carleton.

FABRÍCIO CHAGAS BASTOS é pesquisador associado ao Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge.

Tradução de CLARA ALLAIN

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